sexta-feira, 19 de julho de 2019

Livro. José Luís Peixoto. «Chegava de longe o cacarejar de uma galinha, chegava do quintal do vizinho, do outro lado do muro. Era um cacarejar permanente, quase a adormecer, quase a arrastar-se, mas a continuar sempre»

Cortesia de wikipedia e jdact

«No alto do cabeço, o barbeiro tirava o cigarro da boca, como se o desembaraçasse do bigode, chegava-o ao pavio e fazia cara feia enquanto segurava o foguete de braço esticado, a jorrar fagulhas, antes de o largar. Era um bicho ruim que queria ser solto. Mal podia, num ruído de lixa, esfregava-se no ar e estourava uma bola de fumo no céu, espécie de nuvem anã. De pescoço dobrado para trás, o Ilídio e o Cosme encostavam as mãos à testa para verem esse efeito. A cana, desarmada, indefesa, via-se sem pé e deixava-se cair sobre os campos, coitada». In José Luís Peixoto

«(1948)
A mãe pousou o livro nas mãos do filho. Que mistério. O rapaz não conseguia imaginar um propósito para o objecto que suportava. Pensou em cheirá-lo, mas a porta do quintal estava aberta, entrava luz, havia muita vida lá fora. O rapaz tinha seis anos, fugiu-lhe a atenção, distraiu-se, mas não se desinteressou pelo livro, apenas deixou de o interrogar enquanto objecto em si, começou a questioná-lo de maneira muito mais abstracta, enquanto intenção, enquanto sombra de um acto. A mãe disse o nome do filho: O rapaz, Ilídio, estava nesse momento a tentar imaginar a vontade da mãe e, o que pretendia ao entregar-lhe aquele livro, que era grande de mais para as suas mãos, mas que não era demasiado pesado. A mãe voltou a dizer o nome do filho, Ilídio. E as cores da mãe voltaram a definir-se diante dele. Escuta.
Esta palavra simples, de sílabas simples, foi entendida pelo Ilídio de modo completo, estava a ouvi-la antes de ser dita e continuou a ouvi-la no silêncio que se lhe seguiu. Aquela voz a dizer aquela palavra fazia parte do Ilídio. Podia ouvi-la na cabeça sempre que quisesse. Em certas noites quando se agarrava à mãe e, ao quente, sem ser capaz de dormir, ouvia pedaços da voz da mãe, rasgados, a passarem-lhe pela cabeça como serpentinas. Numa dessas noites, ou em várias, é bem possível que tenha distinguido essa maneira de paz com que a mãe sempre lhe dizia: escuta. Havia tons de voz que a mãe só utilizava para certas palavras ou expressões, como quando se saturava e dizia: por favor, a esculpir cada consoante, com um grande silêncio entre por e favor, a soprar no fim; ou como quando dizia: ora, é só lérias e mais lérias e dava uma gargalhada; ou como quando dizia: tu queres é remolgaria e parodim, e parecia que estava a cantar. Não faltariam exemplos de palavras que conseguia lembrar na voz da mãe. O Ilídio tinha fome.
Chegava de longe o cacarejar de uma galinha, chegava do quintal do vizinho, do outro lado do muro. Era um cacarejar permanente, quase a adormecer, quase a arrastar-se, mas a continuar sempre. Era um cacarejar que, assente sobre aquela hora da tarde, parecia distribuir uma misteriosa harmonia, como o milho moído que, muitas vezes, o vizinho lançava sobre a terra do quintal. O Ilídio sabia que, normalmente, a galinha comia pedras e, em momentos assinalados, lutava com minhocas, que vencia num duelo desigual. Do cimo da pilha de lenha, já a tinha visto. Em ocasiões, colocou a possibilidade de provar minhoca. Quando a galinha as esticava com o bico, as rebentava e exibia o seu interior, pareciam-lhe deliciosas. A mãe ia dizer alguma coisa importante. A mãe era uma mulher que falava muito e ria muito. O Ilídio chamava-a quando queria que ela visse alguma coisa, ela olhava, mas não parava de rir ou de falar. Ali, naquela hora, a mãe dizia as palavras uma a uma, como se só pudesse usar poucas e tivesse de escolhe-las muito bem. Havia demasiado silêncio. O Ilídio sentia isto, mas não era capaz de saber as palavras para dizê-lo a si próprio. Isto era qualquer coisa que sentia como a mudança da hora no Verão, no Inverno, como os dias de semana, o sábado, a quarta-feira e muitas outras coisas que sentia sem conhecer. O Ilídio esperava, tinha seis anos, estava tranquilo. A mãe disse: nunca esqueças». In José Luís Peixoto, Livro, Quetzal Editores, 2010, ISBN 978-972-564-899-5.

Cortesia de QuetzalE/JDACT