segunda-feira, 11 de junho de 2018

Um Amor Feliz. David Mourão-Ferreira. «Nessa noite, se não me engano, a minha mulher e eu simbolizaríamos a Medicina e a Arte: tudo era demasiado genérico para que pudéssemos simbolizar»

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«(…) E foram precisamente os olhos, por me parecerem de todo inacessíveis, por a tornarem de todo inacessível, que me deram nessa noite a coragem de a olhar de frente. Mas sem a mínima veleidade, juro!, de algum dia a seduzir ou conquistar (abomináveis palavras!), apenas com aquele emocionado fervor, também isento de qualquer intenção de posse (outra palavra detestável!), que nos tira a respiração diante de uma obra-prima; e obra-prima tanto mais inesperada por só em trânsito se encontrar num museu medíocre, ou pelo menos anódino, aonde apenas fomos por acaso e aonde é bem provável que nunca mais tornemos.
Tratava-se do primeiro grande jantar oferecido por um desses casais de diplomatas latino-americanos que misteriosamente conseguem ter já entrado em relações, seis meses depois de aqui terem chegado, com todas as pessoas, mesmo todas, pensam eles, que se lhes afigura indispensável conhecer em Lisboa. Um daqueles casais que devem dar-se ao pacientíssimo trabalho, semanas a fio, de criteriosamente agrupar esses manequins em alegóricas parelhas, conjugais ou não, para que do modo mais adequado eles representem, sei lá, a Política e a Literatura, a Diplomacia e a Técnica, a Economia e o Foro, a Música e a Indústria, a Televisão, os Transportes, o Turismo, o Teatro, o Toureio.
Nessa noite, se não me engano, a minha mulher e eu simbolizaríamos a Medicina e a Arte: tudo era demasiado genérico para que pudéssemos simbolizar, mais especificamente, a Pediatria e a Escultura. E, quando por fim chegou aquele casal de estrangeiros relativamente aportuguesados (além de relativamente mais novos que a maioria dos presentes), ninguém terá ficado com grandes dúvidas: se o marido representava a Finança, a Agricultura ou o Investimento Estrangeiro, a mulher, essa, não poderia ali comparecer senão como perfeita imagem da Beleza. Nem outra devia ter sido a estratégica intenção dos donos da casa. No momento das apresentações, eis a designada figura da Beleza (que só por esse facto me estava a causar uma certa antipatia) detendo-se diante da minha mulher, com um sorriso muito simples que imediatamente me desarmou: boa noite, senhora doutora. Não se lembra de mim? A doutora tratou a minha filha quando a minha filha era pequena... A Vicky... Ah! Claro, claro. Lembro-me muito bem.
Depois, perguntando-lhe a minha mulher como estava a pequena, a mãe da Vicky (que não tem forçosamente de se chamar Vicky), erguendo a mão quase à altura da sua própria testa, no gesto de quem desenha no ar o vulto de uma rapariguinha já muito espigada, murmurou, por entre o mesmo bonito sorriso, desta vez um tudo-nada melancólico: assim... Deste tamanho. A dona da casa, que de caninos arreganhados vigiava a cena, incamente ou aztecamente pacientou, a pé firme, enquanto a mãe da suposta Vicky fornecia à minha mulher mais algumas informações suplementares: que a pequena estava a passar muito melhor da asma; que continuava no Liceu Francês; que dentro de dois anos iria estudar para a Suíça; e que viviam ainda, claro está, na mesma quinta dos arredores de Sintra.
Só então compreendi a inca ou azteca paciência da anfitrioa: não estava disposta a que eu fosse apresentado pela minha mulher, ou apenas como marido da minha mulher, o que igualmente redundaria em manifesto prejuízo do carácter alegórico da sua festa; e fez questão, como já acontecera com todas as precedentes apresentações, em acompanhar o meu nome (pois não representava eu ali a Arte?) da necessária referência à minha actividade de escultor. Mas a mãe da pseudo-Vicky, embora sorrindo sempre (ah, que bonito sorriso o seu!), limitou-se a dizer, em voz muito baixa, no tom quase velado em que sempre parecia exprimir-se: tenho ouvido falar. Quase ao mesmo tempo, o shake-hand do marido foi desenvoltamente solene como seria de esperar dos seus óculos de tecnocrata; mas também sobriamente desportivo como convinha à sua pele bronzeada em pleno Inverno». In David Mourão-Ferreira, Um Amor Feliz, Editorial Presença, Lisboa, 1986, Depósito Legal nº 10705/85.

Cortesia EPresença/JDACT