quarta-feira, 6 de junho de 2018

A História de uma Serva. Margaret Atwood. «Uma cadeira, uma cama, um abat-jour. Acima no tecto branco, um ornamento em relevo em forma de coroa de flores, e no centro dele um espaço vazio…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Nós dormimos no que outrora havia sido o ginásio desportivo. O soalho era de madeira envernizada, com listas e círculos pintados, para os jogos que antigamente eram disputados ali; os aros para as redes dos cestos de basquetebol ainda estavam nos seus lugares, embora as redes tivessem desaparecido. Uma arquibancada cercava o aposento para os espectadores, e imaginei que podia sentir, muito ligeiramente, como uma imagem evocada, o cheiro pungente de suor, mesclado com a doçura latente de goma de mascar e o perfume das garotas assistindo aos jogos vestidas com saias de feltro, como eu tinha visto em fotografias, mais tarde de minissaias, em seguida de calças, depois com um brinco só, os cabelos espetados com mechas pintadas de verde. Bailes teriam sido realizados ali, um manuscrito em pergaminho, de sons jamais ouvidos, um estilo seguindo-se ao outro, como subcorrente, uma cadência de tambores, um lamento desesperançado, guirlandas feitas de flores de papel de seda, máscaras de cartolina, uma esfera giratória coberta de espelhos, salpicando os dançarinos com uma neve de luz.
Havia sexo antigo naquela sala e solidão, e expectativa, de alguma coisa sem forma nem nome. Lembro-me daquele anseio, por alguma coisa que estava sempre a ponto de acontecer e que nunca era a mesma como não eram as mãos que nos tocavam ali e, naquela época, por trás, bem lá em baixo nas costas, ou lá atrás no estacionamento nos fundos, ou na sala da televisão com o som bem baixinho e as imagens tremeluzindo sobre corpos que se levantavam. Nós ansiávamos pelo futuro. Como foi que aprendemos isso, aquele talento pela insaciabilidade? Estava no ar; e ainda estava no ar, como uma reflexão posterior, enquanto tentávamos dormir, nos catres do exército que haviam sido dispostos em fileiras, espaçados de modo que não pudéssemos conversar. Tínhamos cobertas, lençóis de flanela de algodão, como as de crianças, e cobertores padrão fabricados para o exército, dos antigos que ainda diziam U.S.. Dobrávamos as nossas roupas cuidadosamente e as colocávamos sobre os banquinhos aos pés das camas. As luzes eram diminuídas, mas não apagadas. Tia Sara e tia Elizabeth patrulhavam; tinham aguilhões eléctricos de tocar gado suspensos por tiras dos cintos de couro.
Porém, não tinham armas de fogo, nem mesmo elas mereciam confiança para portar armas de fogo. As armas eram para os guardas. Especialmente escolhidos entre os Anjos. Os guardas não tinham permissão para entrar no prédio excepto quando eram chamados, e não tínhamos permissão para sair, excepto para as caminhadas, duas vezes por dia, duas a duas, ao redor do campo de futebol que agora estava cercado por uma cerca reforçada de malha metálica com rolos de arame farpado no alto. Os Anjos ficavam postados do lado de fora da cerca, de costas para nós. Eram objectos de medo para nós, mas também algo mais. Se ao menos nos olhassem. Se ao menos pudéssemos falar com eles. Alguma coisa poderia ser usada para troca, acreditávamos, algum negócio acertado, algum intercâmbio feito, ainda tínhamos os nossos corpos. Essa era a nossa fantasia. Aprendemos a sussurrar quase sem qualquer ruído. Na semiobscuridade podíamos esticar os nossos braços, quando as Tias não estavam olhando, e tocar as mãos umas das outras sobre o espaço. Aprendemos a ler lábios, as nossas cabeças deitadas coladas às camas, viradas para o lado, observando a boca umas das outras. Dessa maneira trocávamos nomes, de cama em cama: Alma. Janine. Dolores. Moira. June.
Uma cadeira, uma cama, um abat-jour. Acima no tecto branco, um ornamento em relevo em forma de coroa de flores, e no centro dele um espaço vazio, coberto de emboço, como o lugar num rosto onde o olho foi tirado fora. Outrora deve ter havido um lustre, um candelabro. Eles tinham removido qualquer coisa em que pudesse amarrar uma corda. Uma janela, duas cortinas brancas. Sob a janela, um assento com uma pequena almofada. Quando a janela está parcialmente aberta, ela só se abre parcialmente, o ar pode entrar e fazer as cortinas mexerem-se. Posso sentar na cadeira ou no banco pegado à janela, as mãos com os dedos entrelaçados, e observar isso. A luz do sol também entra pela janela e bate no soalho, que é feito de madeira, em ripas estreitas, muito bem enceradas. Há um tapete no chão, oval, feito de retalhos trançados. Esse é o tipo de toque de que eles gostam: arte folclórica, arcaica, feita por mulheres, nas suas horas livres, de coisas que não têm mais utilidade. Um retorno aos valores tradicionais. Quem tudo economiza tem tudo que precisa. Não estou sendo desperdiçada. Por que ainda preciso?» In Margaret Atwood, A História de uma Serva, 1985, Bertrand Editora, 2013, ISBN 978-972-252-577-0.

Cortesia de BertrandE/JDACT