sábado, 30 de junho de 2018

A Carreira da Índia. Rui L. Godinho. «… através das suas omissões ou da sua inusitada generosidade para com os números, nos vem alertar para uma série de dados e factores que têm sido pouco explorados»

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A Carreira na historiografia moderna
«(…) Chegados a este ponto revelou-se-nos um novo trabalho, que pensamos ser pouco conhecido, mas que introduz uma série de novas questões e problemas. Sem dúvida que a vontade e o caminho a percorrer é ainda grande e T. B. Duncan decidiu dar um passo importante. Duncan utiliza uma série considerável de relações das armadas num esforço importante de cruzamento da informação dispersa por todas elas. Devido à natureza do trabalho ou aos objectivos do mesmo não existem referências às metodologias seguidas. Aqui surgem diversas interrogações. Duncan elabora uma série de cálculos que são, no mínimo, instáveis devido às bases indicadas pelo próprio. O factor mais relevante e inovador neste estudo é um cálculo da tonelagem média. O autor baseia-se em séries manifestamente incompletas (vinte e seis armadas no período de 1500-1578 que correspondem a um terço do total), retirando daí todo o tipo de conclusões. Já outros tentaram fazer este tipo de análise e debateram-se sempre com a enorme irregularidade das séries estatísticas. Outro problema que parece ter ficado esquecido é a enorme heterogeneidade das armadas e da própria arqueação dos navios que as compunham. Daí que a elaboração de séries e médias, alargadas e definidoras de padrões, tenha ainda hoje uma base muito insegura.
Duncan não fica por aqui e calcula não só o número de passageiros como até o de escravos a bordo, partindo de uma relação entre indivíduos e tonelagem que é a nosso ver discutível. O próprio reconhece a dificuldade nestes cálculos mas isso não o impede de fazer generalizações e extrapolações para corroborar as suas ideias. Esta tendência serial, e, diríamos, quase contabilística, estende-se a outros campos, igualmente duvidosos, como a mortalidade a bordo ou o efeito de despovoação que a Carreira da Índia exerceu sobre o Portugal metropolitano. O que se critica aqui não são os métodos ou o caminho que o autor toma na sua investigação, mas sim as generalizações e a homogeneização de uma quantidade apreciável de factores quando sabemos que os dados são incompletos e, principalmente, na maioria dos casos, não sequenciados. A grande virtude deste trabalho é que, através das suas omissões ou da sua inusitada generosidade para com os números, nos vem alertar para uma série de dados e factores que têm sido pouco explorados.
Um estudo mais recente tem vindo a ser desenvolvido por António Lopes, Eduardo Frutuoso e Paulo Guinote. A consistência ao nível das fontes é abalada por uma fundamentação metodológica nem sempre clara. Em primeiro lugar, não são definidos os critérios de escolha das fontes ou até de separação das diversas dúvidas ao nível do movimento dos navios. Os autores referem, apenas, que fizeram um levantamento, o mais exaustivo possível, e que cruzaram toda a informação por forma a obter dados definitivos. O segundo problema surge com o cruzamento dessa mesma informação e com o facto de os autores não nos dizerem como chegaram ao nome de certos navios, certos capitães ou certas datas quando estas surgem de forma muito diversa nas diferentes relações. Outro problema revela-se ao nível da separação do ritmo das partidas e chegadas ao longo do ano (quer a Lisboa, quer ao Índico), tal como Vitorino Magalhães Godinho já tinha realizado. Falta também uma análise mais profunda e diferente das causas dos naufrágios com uma clara separação entre causas principais e secundárias. É que se existe uma causa imediata para o naufrágio (encalhe, afundamento ou incêndio), podem existir outras que provocam essa mesma perda e que no final têm um peso relativo forte. A divisão simples das causas pode, por vezes, distorcer e ampliar erros, não permitindo o apuramento de outros dados que podiam vir a revelar-se como muito interessantes.
O factor de maior surpresa é o recurso a uma obra como Três séculos no mar, que não apresenta valor científico para a maioria da sua informação. Apesar de na introdução se dizer ser um trabalho de investigação histórica, a ementa agora apresentada é um registo de notícias da vida dos navios do período brigantino organizado principalmente através de pesquisa nos Arquivos de Goa, da Marinha e das Colónias e apresentado em forma de inventário, de modo a mostrar a influência do elemento naval na vida militar, política e social de Portugal naquela época, este não é um trabalho histórico na medida em que não cumpre regras básicas de rigor científico como a apresentação de fontes ou a simples fundamentação da informação. Se não duvidamos da boa vontade e honestidade dessa informação também nada temos que comprove esse facto já que as referências, documentais ou bibliográficas, surgem apenas esporadicamente para alguns navios dos finais do século XIX». In Rui Landeiro Godinho, Aspectos e Problemas da Torna-Viagem (1550-1649), Fundação Oriente, Orientalia, 2005, ISBN 972-785-058-8.

Cortesia da FOriente/JDACT