quinta-feira, 2 de junho de 2022

A Ponte dos Suspiros. Fernando Campos. «Dentro de umas semanas, disse o prelado, parto para Roma convocado para um sínodo. Quererás aproveitar?... Deus seja louvado e sua mãe Maria Santíssima!»

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O Sósia

«(…) ... e aqui estás, disse o arcebispo. Que queres de mim?, ... que Vossa Eminência ajude o infeliz rei de Portugal a ser recebido pelo papa. O papa há-de querer provas de quem és. Os meus amigos portugueses darão de mim testemunho. Quem são eles? Proscritos, como é natural, pelo amor que dedicam à sua pátria e ao seu rei. Cuidando que eu havia morrido, tomaram a parte do rei legítimo, meu primo dom António, prior do Crato. Com a derrota de Alcântara, com as derrotas dos Açores, exilaram-se com o rei em Inglaterra, em França, na Flandres, aqui, fugidos à vingança de Filipe...

Dom António morreu e eles, sabendo do meu aparecimento, rejubilaram e acolheram-me... Pessoas gradas, julgo. ... e de autoridade. Frei António Sousa... É frade? ... dominicano. Filho de um embaixador em Espanha, mestre de teologia, grande pregador e outras partes... Frei Luís dos Anjos, agostinho, cronista da ordem. Dom António Brito Pimentel, fidalgo de minha casa, Nuno Costa, médico insigne, e muitos outros, Pantaleão Pessoa, o cónego Lourenço Costa, Sebastião Figueira, Manuel Brito Almeida... De Roma deve estar a chegar um amigo importante, dom Cristóvão Portugal, filho do prior do Crato... Sei quem é. ... o padre José Teixeira... Frei José Teixeira, o esmoler do rei de França e protegido de Catarina Médicis? Esse mesmo. Sábio homem. Não deve tardar a chegar de Paris... Conheço a sua obra. ... e os dominicanos frei Crisóstomo Visitação e frei Estêvão Sampaio... O arcebispo levantou-se e passeou pela sala. Os outros dois levantaram-se também.

Dentro de umas semanas, disse o prelado, parto para Roma convocado para um sínodo. Quererás aproveitar?... Deus seja louvado e sua mãe Maria Santíssima! Julgava eu nunca mais me ser dado ouvir os sinos de Roma, a cidade leonina, e eis que de novo os de São Pedro, de Santa Maria Trastevere, de Sant'Agnese, de San Giovanni in Laterano, de Santa Maria Maggiore e muitos outros, outros tais e outros tantos, badalando, repicando, tilintando, me enchem ouvidos e alma. Agora acredito que finalmente a minha vida vai mudar e terá fim o meu calvário. O arcebispo de Espálato, António Graziani, conseguiu que o papa Clemente me recebesse em audiência e aos meus companheiros. Embora sem as insígnias e a magnificência que seriam próprias de minha qualidade, apresentei-me honestamente vestido de modo a que me tomassem por quem era, nas condições de vicissitude em que me encontrava. O luxo do Sacro Palácio, as longas galerias lustrosas de obras de arte, que os meus amigos olhavam com assombro, não chegaram para romper-me o turbilhão interior. O camareiro que nos conduzia fez-nos parar diante da alta porta da câmara papal. Ali aguardámos até que dentro se ouviu uma campainha e as portadas se abriram. Sua Santidade estava sentado e tinha à sua esquerda o arcebispo de Espálato e à direita o cardeal camerlengo. Entrámos de cabeça descoberta, quando o camareiro me deu passagem e a meus companheiros. Com um joelho em terra, aguardámos a bênção do papa. Então, a um sinal do camerlengo, avancei até ao tapete de veludo em que Sua Santidade tinha os pés. Ajoelhei, o camerlengo levantou a fímbria da batina do papa, a quem eu beijei o pé direito calçado de chapim vermelho com uma cruz branca. Levantei-me e então o arcebispo disse: Sua Santidade tem a bondade de te ouvir». In Fernando Campos, A Ponte dos suspiros, 1999, Difel SA, 2000, ISBN 978-972-290-806-1.

Cortesia de Difel/JDACT

JDACT, Fernando Campos, História, Literatura,