terça-feira, 21 de junho de 2022

O Segundo Sexo. Simone Beauvoir. «Mas a fêmea fecundada tem um triste destino: afunda solitariamente no solo e não raro perece de esgotamento, pondo os primeiros ovos»

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Factos e Mitos. Destino

«(…) Um dos traços mais notáveis, quando percorremos os diversos graus da escala animal, é o facto de que de baixo para cima a vida se individualiza; em baixo, ela emprega-se unicamente na manutenção da espécie, em cima ela gasta-se através de indivíduos singulares. Nas espécies rudimentares, o organismo como que se deixa reduzir ao aparelho reprodutor; nesse caso, há primazia do óvulo, e portanto da fêmea, posto que o óvulo está principalmente votado à pura repetição da vida; mas ela não passa de um abdómen e a sua existência é por inteira devorada pelo trabalho de uma monstruosa ovulação. Atinge, em relação ao macho, dimensões gigantescas; muitas vezes seus membros são apenas cotos, seu corpo um saco informe, todos os órgãos degeneram em proveito dos ovos. Em verdade, embora constituindo dois organismos distintos, machos e fêmeas mal podem então ser encarados como indivíduos, formam um só todo com elementos indissoluvelmente ligados: são casos intermediários entre o hermafroditismo e o gonocorismo. Assim, entre os entoniscíneos que vivem como parasitas no carangueijo, a fêmea é uma espécie de chouriço esbranquiçado, envolvido em lâminas incubadoras que encerram milhares de ovos; no meio destes encontram-se minúsculos machos e larvas destinadas a fornecer machos de substituição.

A escravização do macho não é ainda mais total entre os edriolidíneos: acha-se ele fixado sob o opérculo da fêmea, não possui tubo digestivo pessoal e seu papel é unicamente reprodutor. Mas em todos esses casos não é a fêmea menos escravizada do que ele; ela está escravizada à espécie. Se o macho se encontra preso à fêmea, esta também se encontra presa ou a um organismo vivo de que se nutre como parasita ou a um substracto mineral; consome-se na produção dos ovos que o minúsculo macho fecunda. Quando a vida assume formas mais complexas, esboça-se uma autonomia individual e o laço que une sexos se afrouxa. Mas entre os insectos os dois sexos permanecem estreitamente subordinados aos ovos. Amiúde, como entre os efemerópteros, macho e fêmea morrem imediatamente depois do coito e da postura; por vezes, como entre os rotíferos e os mosquitos, o macho, desprovido de aparelho digestivo, sucumbe após a fecundação, enquanto a fêmea, que pode alimentar-se, sobrevive; é que a formação dos ovos e a postura exigem algum tempo. A mãe expira logo que o destino da geração seguinte se acha assegurado. O privilégio da fêmea, entre grande número de insectos, provém de ser a fecundação um processo geralmente muito rápido, ao passo que a ovulação e a incubação dos ovos exigem um trabalho demorado. Entre as térmitas, a enorme rainha, empanturrada de papa, que põe um ovo por segundo até que, afinal estéril, é exterminada impiedosamente, não é menos escrava do que o macho anão, grudado ao abdómen dela e que fecunda os ovos à proporção que vão sendo expelidos. Nos matriarcados dos formigueiros e das colmeias, os machos são uns importunos exterminados em cada estação: no momento do voo nupcial, todos os machos saem do formigueiro e alçam voo em busca das fêmeas; se as atingem e fecundam, morrem logo após, esgotados; se retornam, as operárias impedem-nos de entrar, matam-nos ou deixam-nos morrer de fome. Mas a fêmea fecundada tem um triste destino: afunda solitariamente no solo e não raro perece de esgotamento, pondo os primeiros ovos». In Simone Beauvoir, O Segundo Sexo, volume 1, 1949, Quetzal Editores, colecção Serpente Emplomada, 2015, ISBN 978-989-722-193-4.

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