segunda-feira, 6 de junho de 2022

A Ponte dos Suspiros. Fernando Campos. «Na estalagem, preparavam-me as malas para o regresso a Veneza, vem um criado dizer-me que se encontrava em baixo um senhor que me desejava falar»

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O Sósia

«(…) O papa, no ar cansado, tinha aquele meio sorriso sonso, Deus me perdoe, de quem cumpre a rotina. Falei procurando ser sucinto, contei-lhe de mim, aduzi a autoridade dos meus amigos ali presentes, que anuíam com a cabeça. O semblante do pontífice foi-se alterando ao passo que eu avançava no meu relato e, de meramente curioso, demudou em estupefacto. Quando terminei, disse: Meu filho. É deveras assombroso o que referes, mas em ocorrência de tanta gravidade haveis de concordar que a vossa palavra sozinha e a de vossos amigos sozinhos não bastam a prevenir a necessária prudência... Poderei apresentar provas concretas? Olhou interdito para o camerlengo, para o arcebispo, que não sabiam que dizer ou fazer em tão inesperada emergência, e com um gesto da direita convidou-me a continuar.

Saberá Vossa Santidade que, depois de eu ter ascendido ao trono de Portugal, enviei a Roma, ao papa Pio quinto, um embaixador especial, o meu legado dom Álvaro Castro, a prestar-lhe obediência. Esse mesmo pontífice, como é uso, mandou-me pelo embaixador dom Diogo Meneses o estoque e o chapéu bentos... Quase imperceptível sinal fez o papa ao cardeal camerlengo, que, compreendendo a mensagem, se dirigiu a uma porta interior a dar uma ordem. Incitou-me em seguida Sua Santidade a que me recordasse eu de mais factos concretos das relações do rei de Portugal com a Santa Sé. Sem qualquer hesitação, precisei: A seis de Outubro de mil e quinhentos e sessenta e nove, Pio quinto concedeu-me o breve do jubileu..., parei a vasculhar, a escolher na memória e prossegui: Lembro-me de que o núncio apostólico, frei Leonardo Marini, arcebispo Lanciano, foi a Portugal de mando de Gregório treze pedir-me apoio para a liga que o papa pretendia organizar contra o Turco...

A porta interior entreabriu-se e o camerlengo acorreu a tomar um maço de documentos que alguém lhe trazia. O papa e todos os presentes olharam expectantes. Menos eu. Não morava em mim a dúvida. O camerlengo aproximou-se com um ar radiante de espanto: Bate tudo certo, Santidade, com o que este senhor..., com o que Sua Alteza disse!, e mostrava as provas documentais ao papa, que, durante algum tempo as olhou em silêncio, como a pensar, sem as tomar das mãos do prelado. Enfim disse: Estas provas terão de ser examinadas pela Cúria. Providenciai nesse sentido, cardeal. Meu filho, como muito bem deves calcular, podem advir perturbações internacionais de tão inesperada circunstância. O teu caso, porém, não será esquecido. O Senhor te acompanhe e à tua comitiva, e, abençoando-nos, deu a audiência por terminada. O camerlengo acompanhou-nos à porta.

Com evidente alegria e entusiasmo se congratulavam comigo, a caminho do albergue, os companheiros pelo bem-sucedido da empresa. Sinto-me a alma a ressuscitar, amigos, desabafei. Estava morto e ardia nas profundezas do Inferno. Agora refrigera-se-me o coração. Conquanto, rosnou dentro de si Nuno Costa, não morras depois de teres ressuscitado...

Na estalagem, preparavam-me as malas para o regresso a Veneza, vem um criado dizer-me que se encontrava em baixo um senhor que me desejava falar. Frei Crisóstomo, pedi, fazei-me essa mercê. Ide ver quem é. Desceu o frade e, daí a pouco, regressava: Bofé!, disse muito pálido. Quando o olhei, fiquei confundido. Não vos havia eu deixado aqui, quando desci?... E não é que vos vou encontrar lá em baixo? Tereis o dom da ubiquidade? O homem, vestido à calabresa, estava de costas. Ao sentir-me, voltou-se e eu..., dei de caras convosco! Tal e qual. Convosco. A mesma estatura, o mesmo semblante, a mesma barba e cabelo, embora mais escuros... Só quando falou me dei conta de que não éreis vós... Tendes um irmão gémeo?... Quem é então e que pretende? Um calabrês. Pede para falar a Sua Alteza o rei de Portugal. Como sabe ele...? ... que vos fora apresentado por um tal fra Raimundo, de Messina, quando o visitastes na Sicília..., que já uma vez vos fez recado, indo com cartas vossas a Portugal... Túlio!, exclamei. Sim. Marco Túlio Catizone». In Fernando Campos, A Ponte dos suspiros, 1999, Difel SA, 2000, ISBN 978-972-290-806-1.

Cortesia de Difel/JDACT

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