quinta-feira, 19 de outubro de 2017

A Vitória do Imperador. Domingos Amaral. «Só me curei com uma longa viagem. Andei três anos pelo mundo, como um sonâmbulo pela noite, contou ele. No mesmo ano em que o conde Henrique morrera…»

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Guimarães. Dezembro de 1130
«(…) Tal como meu pai, meu tio era um homem de média estatura, com os cabelos já acinzentados. Com mais de quarenta anos, nos seus olhos escuros e baços notava-se a desilusão dos tristes, embora o seu sorriso pacífico revelasse uma aceitação serena das agruras com que a vida o brindara. A sua esposa acompanhara-o apenas dois anos e só a Virgem Maria sabia o quanto chorara a sua prematura morte. Vi, pelo canto do olho, meu pai confirmar com um aceno de cabeça. Os irmãos Moniz não só eram fisicamente parecidos, como partilhavam uma solidariedade pesarosa, pois a prematura viuvez de ambos era resultado de doenças inesperadas das respectivas mulheres. Fiquei louco de tristeza, confessou meu tio. Pensei em morrer também, para me juntar a ela no Céu. Associei aquele pensamento lúgubre à partida súbita e fatal de sua filha Raimunda. Talvez esta tivesse herdado do pai uma propensão pelos abismos negros, acrescentando-lhe a trágica vontade para executar um acto tão extreemo que meu tio nunca tivera.
Só me curei com uma longa viagem. Andei três anos pelo mundo, como um sonâmbulo pela noite, contou ele. No mesmo ano em que o conde Henrique morrera, tinha Afonso Henriques três anos e eu quatro, Ermígio Moniz partira para um demorado passeio que o levara primeiro por terras de Hispânia e depois pelos mares mediterrâneos. A vossa prima foi o fruto dessa peregrinação. Trouxe-a no regresso e tentei educá-la, mas também ela se entregou a Deus. Mirou Afonso Henriques e no seu olhar não existia nenhuma recriminação ou indício de atribuição de culpa, pois não considerava o príncipe responsável pelo suicídio de Raimunda. Com um suspiro compreensivo, interrogou-se: quem somos nós para entender o mistério da vida e da morte? Porque se matou Raimunda? Porque não foi bem-amada por mim, seu pai? Talvez... Nunca soube como falar com ela. Meu tio sempre tratara a filha com alguma distância, mas isso era habitual com os bastardos e as bastardas. Agora que ela já não estava entre nós, admitia a possibilidade de lhe ter falhado com algo, carregando a tormenta póstuma de um progenitor alheado.
Não me lembro de a ter abraçado uma única vez, depois, olhando de novo para o príncipe, murmurou: como vedes, não sois o único a sofrer com as mulheres. De repente, Afonso Henriques ergueu a sobrancelha, pois nascera nele um laivo de curiosidade. Como morreu a mãe dela? Meu tio Ermígio torceu o rosto num esgar, como se lhe causasse dor ter de revisitar tempos antigos. Mas respondeu: ao dar à luz. Tanta parcimónia descritiva não satisfez Afonso Henriques, que quis saber quem era ela e onde meu tio a conhecera. O príncipe parecia pela primeira vez interessado numa história exterior a si mesmo e Ermígio Moniz lá acabou por narrar o nascimento de minha prima. Partido de Lamego, meu tio rumara a Compostela, visitara Leão, Sahagún e Toledo. Depois, descera a terras muçulmanas, a Oreja, Jaen, Sevilha, Córdova e Mérida, e por lá conhecera uma rapariga tímida, mas muito carinhosa, a quem se afeiçoara.
Dominado pelos imperativos masculinos, curou com ela uma parcela do seu anterior desgosto e, embalado por aquele doce interregno de ternuras, não pensara em partir até ao dia em que foi surpreendido pelo inesperado desaparecimento da moça. Permanecera semanas no local, sempre à espera de que a jovem reaparecesse, mas, como isso não aconteceu, foi forçado a recomeçar a sua viagem. Conhecida a Andaluzia árabe, subira a Saragoça e a Barcelona, onde apanhara um barco até Roma. Mais de um ano depois, quando se sentiu em paz e aceitou finalmente o seu destino inglório de viúvo, decidiu regressar e, como sempre acontece com os homens tristes que se apegam a uma mulher, voltou à cidade onde se sentira bem. Contudo, o destino presenteou-o com novo desgosto, quando encontrou na casa onde estivera apenas uma velha criada, com uma criança nos braços, órfã da mãe que a gerara.
Foi um segundo e cruel sofrimento. Como a idosa ameaçava entregar a menina, meu tio tomou posse da bastarda e regressou ao Condado Portucalense. Tentei tudo para que Raimunda fosse feliz, a viver convosco, seus primos, disse Ermígio Moniz, olhando para mim. Ainda curioso, o príncipe perguntou: como se chamava a mãe dela? A falecida respondia pelo nome de Aqsa e logo Afonso Henriques quis saber se era moura, o que meu tio confirmou. Antes do desaparecimento, haviam combinado que ela se converteria ao cristianismo, se ficassem juntos, coisa que nunca aconteceu. Ao ouvir isto, o príncipe de Portugal afirmou, num timbre solene que sempre usava quando falava do seu famoso avô: o imperador Afonso VI também casou com uma moura chamada Zaida de Sevilha! Talvez devesse fazer como ele e desposar uma das princesas andaluzas que continuam presas em Coimbra!» In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, A Vitória do Imperador, Casa das Letras, LeYa, 2016, ISBN 978-989-741-461.

Cortesia de CdasLetras/LeYa/JDACT