sexta-feira, 20 de outubro de 2017

Mentiras de Guerra. 1133-1134. Domingos Amaral. «Quando um dia ouviu, no conselho municipal, alguém sugerir que se fizesse a paz com Afonso Henriques, pagando-lhe até um tributo, o cordovês suspeitou»

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Serra Morena (perto de Córdova). Fevereiro de 1133
«Ao entrar pelo portão do Castelo de Hisn Abi Cherif, o cordovês Abu Zhakaria comoveu-se ao reparar nos canteiros de flores que cercavam a pequena torre de menagem. Tal corno da última vez que ali estivera, sete anos antes, continuavam repletos de belas e coloridas plantas, sinal de que alguém os cuidava em permanência. Fora naquele local que Taxfin, segundo marido de Zulmira, o obrigara a prometer que traria de volta Fátima e Zaida, prisioneiras dos cristãos. Desconsolado, o cordovês recordou o seu falhanço. Os fundos que Taxfin lhe colocara ao dispor, tão vastos há sete anos, haviam sido consumidos a alimentar uma companhia de mercenários que, sendo exímia a matar cristãos em campo aberto, não possuía força suficiente para invadir Coimbra e resgatar as princesas.
A somar à fraqueza financeira, a situação política em Santarém alterara-se. A lendária paixão de Abu Zhakaria por Fátima, geradora de admiração e respeito no povo, tinha como alto preço a desconfiança com que o miravam os influentes da cidade. Para forte azar, o seu único aliado, o governador de Santarém, morrera no final do ano passado. O posto de wali de Santarém permanecia vago. Ali Yusuf, que governava o califado a partir de Marraquexe, não parecia preocupado em nomear sucessor, vivendo Santarém ao sabor dos interesses das principais famílias da região, para quem Zhakaria não passava de um inútil subversivo. Abandonado pelos mercenários a quem deixara de pagar e sem apoios relevantes na cidade, Abu depressa percebera que teria de regressar a Córdova, à procura de novos aliados, pois os fossados de Peres Cativo aproximavam-se perigosamente de Santarém, aumentando o alarme social.
Quando um dia ouviu, no conselho municipal, alguém sugerir que se fizesse a paz com Afonso Henriques, pagando-lhe até um tributo, o cordovês suspeitou de que os assustados notáveis da cidade facilmente o entregariam ao príncipe de Portugal, como prove de boa vontade. A fúria perdera-se, concluíra Zhakaria. No Verão anterior, degolara uma companhia inteira de galegos, deixando nove deles empalados junto ao rio Nabão e enviando o décimo até Soure, numa provocação maliciosa aos cristãos. Com essa exibição bárbara e fútil, o seu prestígio em Santarém ensombrara-se e, mal faleceu o governador, viu-se solitário e cercado de hostilidade.
Desanimado, metera-se a caminho de Córdova, sabendo a tristeza que iria causar a Fátima mal ela soubesse do seu abandono. Tantos anos separados e ainda a amava! Desde que ela ficara refém, apenas a vira por duas vezes, em Soure e em Coimbra, quando estivera bem perto de resgatar as duas irmãs mouras. Apesar disso, o amor resistia dentro dele e recordava com intensidade a profecia de Tarfin de que um dia Zhakaria se casaria com Fátima ali, em Hisn Abi Cherif! Pouco antes de chegar ao portão do belo e originai castelo de arenito vermelho, perdido nos contrafortes da serra Morena, passara perto de um pequeno mausoléu, o túmulo dos Benu Ummeya, onde sabia repousarem os restos mortais de vários elementos da família. Lá estavam enterrados Hixam III, o último califa de Córdova, bem como o seu filho, Hixam de Hisn, primeiro marido de Zulmira e pai de Fátima e Zaida. E lá estavam também Taxfin, antigo governador de Córdova e segundo marido de Zulmira, bem como esta última, que, depois de assassinada em Coimbra, fora para ali trazida pelo almocreve Mem». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, A Vitória do Imperador, Casa das Letras, LeYa, 2016, ISBN 978-989-741-461.

Cortesia de CdasLetras/LeYa/JDACT