sábado, 14 de outubro de 2017

Aos Olhos de Deus. José Manuel Saraiva. «Se Deus ajudar os marinheiros, e o vento e as ondas continuarem de feição, iremos tê-las cá no próximo mês. Achais, meu senhor? Tenho a certeza»

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«(…) O fidalgo não se sentou nem agradeceu a lhaneza. Com as mãos atrás das costas deu meia dúzia de passos sem destino pelo vasto salão que bem conhecia, olhou para o rio acanhado de naus e caravelas, e só depois foi encostar-se a uma das janelas laterais viradas a sul, para daí observar, contemplativo, o movimento dos pedreiros nas obras do mosteiro dos Jerónimos, à beira-Tejo. Como estava diferente aquele local! Diogo mal se lembrava de que antes de ser lançada a primeira pedra para a construção do monumento, a seis de Janeiro de mil quinhentos e dois, dia dos Reis Magos, existira ali uma capela mandada erigir anos antes pelo infante Henrique, em honra da Virgem de Belém, e que chegara a servir de aconchego religioso aos freires da Ordem de Cristo até que o papa Alexandre VI, através da bula Eximiae Devotionis Affectus, decidiu autorizar Manuel I a converter a ermida e eremitério num mosteiro com igreja, claustros e as oficinas necessárias. Do mesmo modo, sentia um estranho incómodo por já não se recordar exactamente da fisionomia do antigo bairro de marinheiros e pescadores que rodeava a velha igreja, das cores que o pintavam, do seu constante alvoroço, da tradicional desordem entre as suas gentes e que tanta vida dera àquele espaço até à demolição das respectivas casas, por decreto régio de vinte e três de Junho de mil quatrocentos e noventa e seis. Em que meditais? Acaso não é do vosso agrado a magnificência da obra que daqui vedes?, perguntou, irónico, o monarca, acabado de entrar silenciosamente no salão.
É muito bela, meu rei e senhor!, respondeu o fidalgo, surpreendido, antes de os dois homens se enternecerem num apressado gesto de comunhão. Em cada hora que passa mais grandiosa fica. Por alguns momentos, Manuel I e Diogo Pacheco mantiveram-se em silêncio, admirando, lá longe, o movimento dos operários e a arquitectura do mosteiro que, depois de concluído, e se Deus viesse a querer, haveria um dia de funcionar como sede da Ordem de S. Jerónimo, vocacionada para a administração do culto mortuário da dinastia real de Castela. Mas, para o monarca português, mais importante do que instalar ali a ordem religiosa, em obediência a uma promessa antiga que tanto agradara aos reis católicos do país vizinho, talvez fosse o facto de os Jerónimos virem a converter-se no símbolo do seu poder absoluto. E por isso desejava que o mosteiro superasse em grandiosidade obras tão admiráveis quanto as pirâmides do Egipto, os colossos romanos e o próprio templo de Salomão.
Aliás, Manuel I, cuja subida ao trono ficara a dever-se à morte prematura do sobrinho infante Afonso, em consequência da queda de um cavalo enfurecido, tinha a presunção de ter vindo ao mundo para reinar, servir a Deus e por vontade de Deus. E até se remetera à ideia de que, apesar de ter ocupado o sexto lugar na linha de sucessão dinástica, chegara ao ceptro e à coroa porque ninguém seria capaz de desempenhar melhor e mais eficazmente o combate contra os infiéis, em defesa da libertação dos lugares santos. Era esse o seu desígnio. Por este andar, com a ajuda de Deus, o meu mando e o esforço dos pedreiros, o mosteiro ficará pronto antes do tempo, comentou o soberano, interrompendo a abstracção de Diogo. O fidalgo estremeceu ligeiramente, alisou o cabelo com os dedos e comentou: sempre considerei aquele sítio o mais apropriado de todos para a construção do templo, dado que se situa às portas do mar. Mas, pensando melhor, não achais que irá ficar longe da cidade? Descansai dos vossos temores, bom amigo, porque a cidade ainda um dia virá a estender-se até aqui, retorquiu o monarca, com indisfarçável soberba. Deus vos ouça, Alteza. Ad gloriam!
Após trocarem algumas palavras de circunstância sobre o estado do tempo e a boa saúde física de cada qual, os dois homens deslocaram-se de braço dado até outra janela de frente para o Tejo, onde o rei gostava de ver o Sol morrer em cada tarde. De resto, Manuel I tinha o hábito de passar parte do seu tempo nesse salão, grande e luxuoso, em cujas paredes mandara colocar um número considerável de quadros de autoria de pintores ingleses, florentinos e genoveses, além de tecidos de seda pintados na Índia por artistas de indiscutível talento. O mobiliário, constituído por peças da alta Idade Média e outras de vocação renascentista, assentava quase todo sobre grossas tapeçarias persas, de intensas e diversificadas cores. Pouco ou nada fazia sentido na riquíssima sala, mas era assim, na mais insólita desarmonia e ausência de bom gosto, que o rei adorava viver e praticar o seu augusto mando. Quando chegarão as caravelas com os presentes para Sua Santidade?, perguntou subitamente Diogo Pacheco, ao mesmo tempo que olhava enternecido para o rio, onde se espalhavam centenas de naus, galés, batéis e embarcações de pequeno e médio portes.
Se Deus ajudar os marinheiros, e o vento e as ondas continuarem de feição, iremos tê-las cá no próximo mês. Achais, meu senhor? Tenho a certeza. O monarca deu uma palmada nas costas do fidalgo para logo de seguida o convidar a ocupar um banco de pinho, enquanto ele, na lentidão que lhe era própria, se foi sentar na sédia que só o rei podia preencher. Depois, já recostado no espaldar coberto por um manto de cetim vermelho, cruzou as pernas, começou a fazer pequenos círculos com o pé desapoiado, entreteceu os dedos das mãos grandes e poderosas e, calmo como as águas do Tejo nesse dia, prosseguiu a conversa. Como podeis observar por toda a cidade, o povo aguarda com o maior entusiasmo a chegada das naus. Mas ninguém sabe, nem eu mesmo, que coisas trazem. Sei apenas que vêm carregadas de grandes riquezas e de animais estranhos para então levarmos tudo ao papa... Tudo!?, interrompeu, admirado, Diogo Pacheco. ... Bom, tudo não. Quase tudo, corrigiu o rei, apressadamente, antes de continuar: quero oferecer a Sua Santidade, ainda que tanto não mereça, presentes que nunca ninguém lhe deu. E como ele é mais dado ao luxo do que a Deus, e mais vigilante da vida material do que da vida espiritual, certamente ficará muito contente. E eu quero deslumbrá-lo, distinto amigo, quero fazê-lo feliz!» In José Manuel Saraiva, Aos Olhos de Deus, Oficina do Livro Editor, 2008, ISBN 978-989-555-364-8.

Cortesia de OdoLivroE/JDACT