sábado, 14 de outubro de 2017

Aos Olhos de Deus. José Manuel Saraiva. «O que não era normal, e disso todos tinham motivo para desconfiar, é que um monarca privasse com um fidalgo, por mais ilustre e dedicado que ele fosse»

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«A magnífica embaixada do monarca Manuel I ao papa Leão X. Os pecados que o Império não conseguiu esconder. Uma história de amor que venceu a fé dos homens. 1514. Na época áurea dos Descobrimentos Portugueses, Manuel I toma a decisão de enviar ao papa Leão X uma grande embaixada, demonstração viva do seu poderio temporal. Diogo Pacheco, fidalgo da corte, amigo pessoal do rei Venturoso, é encarregado pelo monarca de compor e proferir a Oração de Obediência ao Sumo Pontífice, o momento alto da embaixada. A comitiva parte de Lisboa em cinco embarcações com um tesouro valiosíssimo e animais exóticos trazidos de África e da Índia. Após conturbada viagem o cortejo chega a Roma, onde o papa preparara uma sumptuosa recepção com a presença das mais altas figuras profanas e religiosas da época. No meio do fausto da corte portuguesa e da Cúria dos Medici, contrastante com a dor e a miséria do povo sofredor, ascende à figura de símbolo o amor regenerador de Diogo pela bela judia, Raquel Aboab, a quem aquele salvara da fogueira e da sanha intolerante do antijudaísmo reinante. A época de ouro da história do mundo esconde segredos e pecados inconfessáveis das grandes figuras que comandam os destinos do mundo. Entre a fé e a cegueira do poder, a aparência e a essência da condição humana, o sentido de missão e a vaidade só o amor poderá ser redentor. Aos olhos de Deus as personalidades da história não ficarão impunes. E Deus não jogará aos dados.

Naquela manhã de Novembro de mil quinhentos e treze, cinzenta e fria, o rei Manuel I mandou chamar aos Paços da Casa da Mina um dos mais distintos fidalgos da sua corte: Diogo Pacheco. Queria informá-lo de que decidira incluí-lo na embaixada que dentro de algumas semanas iria enviar ao papa Leão X e, ao mesmo tempo, pedir-lhe para que fosse ele a proferir na Santa Sé a oração de obediência, sempre devida ao Sumo Pontífice. Manuel I reconhecia que Diogo Pacheco, além de gozar de boa aparência e compostura, tinha a fama e o benefício de ser um notável jurisconsulto e latinista, pelo que na ideia incontestada do soberano não havia ninguém no reino português com tantas virtudes quanto aquele homem para desempenhar um papel de tão grande responsabilidade junto de Sua Santidade. Mas não foram apenas as qualidades intelectuais e o aspecto físico do fidalgo que presidiram à escolha do seu nome. A circunstância de o rei decidir nomeá-lo para se dirigir ao papa, na cúria de Roma, em representação de Sua Alteza o Rei de Portugal e dos Algarves de Aquém e de Além Mar, Senhor da Conquista, da Navegação e do Comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e Índia, ficou igualmente a dever-se ao facto de o soberano cultivar por Diogo Pacheco, desde os primeiros anos da juventude, um desajustado, e por vezes enigmático, sentimento de estima pessoal.
Aliás, a nobreza e o clero, porventura até mais o clero do que a nobreza, não se cansavam de censurar, naquela dissimulada cobardia que lhes era própria, a relação demasiado íntima entre os dois homens. Uns garantiam que o rei e o súbdito tinham o hábito de se encontrar a sós num discreto aposento da sede da coroa, instalada, havia poucos anos, num palácio com galerias de inspiração renascentista, de frente para o Tejo; outros asseveravam que tais encontros incluíam a participação de donzelas de fina linhagem mas de duvidosa conduta. Verdade ou mentira, certo é que nunca ninguém ousou pronunciar na rua uma palavra sobre o assunto, muito menos levantar suspeitas públicas, por mais ténues que se revelassem, acerca do comportamento alegadamente desviante de Sua Alteza Real. Só no conforto da privança dos eclesiásticos em igrejas e nos mosteiros de Lisboa, ou nas festas de bebedeira e luxúria que os nobres organizavam nas suas residências, se comentava, mas sempre com a máxima cautela e total discrição, que o rei e o fidalgo mantinham uma afinidade de contornos imprecisos. E até se dizia, como forma de provocação ou em jeito de graça, que Manuel I decidira abandonar os medievos e desaconchegados paços da Alcáçova do castelo para se instalar nos antigos armazéns da Casa da Mina, em cujo interior, entretanto recuperado e transformado num palácio para acolher a sede da monarquia, persistia o perfume lúbrico da canela e o aroma estimulante da pimenta...
Mas isso acontecia porque tinha sido ali, quando o novo lar da coroa era ainda um entreposto, que se haviam guardado as especiarias provenientes das terras da Guiné, da Índia e do Brasil, bem como outros produtos de luxo, designadamente o algodão e o marfim. De qualquer modo, por ódio ou maledicência, com razão ou sem ela, as dúvidas sobre o estilo de convivência entre o monarca e o fidalgo tinham-se instalado na cidade. É claro que ambos contribuíam, e muito, para o falatório de clérigos e nobres. Em certas ocasiões, em público ou em privado, Manuel I e Diogo Pacheco raramente evitavam um cumprimento de exagerado afecto. Às vezes davam as mãos, mantinham-nas apertadas por alguns instantes, segredavam qualquer coisa e só depois viravam costas. Noutros encontros, observados com frequência por membros da corte, Diogo chegava mesmo a aconchegar a aljuba ao rei, aproveitando a circunstância para lhe massajar os ombros com a ponta dos dedos, ao jeito de quem pretende sacudir das vestes um indesejável cisco.
Claro que nenhum destes gestos podia, por si só, garantir a existência de qualquer ligação emocional entre os dois homens, muito menos justificar o aleive de que ambos eram alvo por parte dos eclesiásticos, quase todos perversos, todos sinistros, e de alguns nobres que nunca se haviam acomodado à ideia de o monarca não ter levado tão longe quanto os reis católicos de Castela a perseguição aos judeus. O que não era normal, e disso todos tinham motivo para desconfiar, é que um monarca privasse com um fidalgo, por mais ilustre e dedicado que ele fosse, como Manuel I o fazia com Diogo Pacheco. Para todos os efeitos, um rei era um rei; um súbdito era um súbdito. Porque se assim não fosse nem Deus no Céu, nem o papa na Terra, tinham perdido tempo a estabelecer e a regular o princípio inelutável da diferença entre os homens. E entre o soberano e o vassalo mal se notava essa imperativa e sagrada dissemelhança. Por isso, algum mistério havia... Logo que entrou nos paços reais, Diogo Pacheco foi imediatamente conduzido pelo privado do rei ao salão nobre do palácio. Sentai-vos, senhor. Sua Alteza Real não demora, declarou o valido num tom de amável simpatia, antes de se retirar e de fazer um respeitoso gesto, inclinando a cabeça». In José Manuel Saraiva, Aos Olhos de Deus, Oficina do Livro Editor, 2008, ISBN 978-989-555-364-8.

Cortesia de OdoLivroE/JDACT