quarta-feira, 2 de outubro de 2019

O Pêndulo de Foucault. Umberto Eco.«… que calcular vinte e sete à vigésima sétima potência; e terias, creio, 444 bilhões de bilhões de bilhões de bilhões de possibilidades, ou pouco menos que isso, em todo caso um número de trinta e nove dígitos»

Cortesia de wikipedia e jdact

Ficheiro: Abu
«(…) E o meu Abulafia será mais cauto e respeitoso que o teu. Mais modesto. O problema não é encontrar todas as combinações do nome de Deus? Pois bem, olha aqui neste manual, e vê que temos um pequeno programa em Basic para permutar todas as sequências de quatro letras. Parece mesmo feito de propósito para IHVH. Aqui está, quer que o ponha na máquina? Experimenta, escreve I,H,V,H quando o input pedir, e põe o programa a funcionar. Não obtiveste grande coisa: as permutações possíveis são apenas vinte e quatro. Santos Serafins. E que farás com vinte e quatro nomes de Deus? Achas que os nossos sábios já não haviam feito o cálculo? Basta ler o Sefer Ietzirah, décima sexta secção do capítulo quarto. E não tinham calculadoras. Duas Pedras constroem duas Casas. Três Pedras constroem seis Casas. Quatro Pedras constroem vinte e quatro Casas. Cinco Pedras constroem cento e vinte Casas. Seis Pedras constroem setecentas e vinte Casas. Sete Pedras constroem cinco mil e quarenta Casas. Daqui por diante vai e pensa naquilo que a boca não pode dizer e os ouvidos não podem escutar. Sabes como se chama hoje isto? Cálculo factorial. E sabes porque a Tradição te adverte que dali para a frente é melhor desistir? Porque se as letras do nome de Deus fossem oito, as permutações seriam quarenta mil, e se fossem dez seriam três milhões e seiscentas mil, as permutações de teu pobre nome seriam quase quarenta milhões, e ainda bem que não tens a midde initial dos americanos, pois que então subiriam para mais de quatrocentos milhões. E se as letras do nome de Deus fossem vinte e sete, porque o alfabeto hebraico não tem vogais, mas antes vinte e dois sons e mais cinco variantes, os seus nomes possíveis seriam um número de vinte e nove algarismos. Mas terias que calcular igualmente as repetições, pois não se pode excluir a hipótese de que o nome de Deus seja Alef repetido vinte e sete vezes, e aí então os factoriais já não te bastariam e terias que calcular vinte e sete à vigésima sétima potência; e terias, creio, 444 bilhões de bilhões de bilhões de bilhões de possibilidades, ou pouco menos que isso, em todo caso um número de trinta e nove dígitos.
Estás trapaceando para impressionar-me. Eu também li o teu Seler Jetzirah. As letras fundamentais são vinte e duas, e com elas, apenas com elas, Deus formou todo o criado. Contudo, é bom não recorreres aos sofismas, porque se entras nessa ordem de grandezas, se em vez de vinte e sete à vigésima sétima fazes vinte e dois à vigésima segunda, acabas obtendo algo como trezentos e quarenta bilhões de bilhões de bilhões. Na tua ordem de grandeza humana, não faz diferença, não é mesmo? Mas fiques sabendo que se tivesses de contar um dois três e assim por diante, um número por segundo, só para chegar a um bilhão, um ínfimo bilhão, terias gasto quase trinta e dois anos. Mas a coisa é mais complexa ainda do que imaginas e a Cabala não se reduz ao Sefer Jetzirah. E digo isso porque uma boa permutação da Torah precisaria usar todas as vinte e sete letras. É verdade que as cinco finais, se devessem no curso de uma permutação cair no corpo da palavra, se transformariam na sua equivalente normal. Mas isso nem sempre ocorre. Em Isaías nove seis sete, a palavra LMRBH, Lemarbah, que por acaso significa multiplicar, é escrita com mem final no meio. E por quê?
Porque cada letra corresponde a um número e a mem normal vale quarenta enquanto a mem final vale seiscentos. Não está em jogo a Temurah, que te ensina a permutar, mas sim a Ctematria, que encontra sublimes afinidades entre a palavra e o seu valor numérico. Com a mem final a palavra LMRBH não vale 277 mas sim 837, equivalendo assim a ThThZL, Thath Zal, que significa aquele que doa profusamente. Logo estás vendo que é necessário levar em consideração todas as vinte e sete letras, pois o que conta é não apenas o som mas igualmente o número. Porém, voltemos agora ao meu cálculo: as permutações são superiores a quatrocentos bilhões de bilhões de bilhões de bilhões. E sabes quanto tempo seria necessário para se experimentar todas elas, uma por segundo, admitindo-se que a máquina, não a tua, pequena e miserável, pudesse fazê-lo? Com uma combinação por segundo conseguirias sete bilhões de bilhões de bilhões de bilhões de minutos, cento e vinte e três milhões de bilhões de bilhões de bilhões de horas, pouco mais de cinco milhões de bilhões de bilhões de bilhões de dias, catorze mil bilhões de bilhões de bilhões de anos, cento e quarenta bilhões de bilhões de bilhões de séculos, catorze bilhões de bilhões de bilhões de milénios. E se tivesses uma calculadora capaz de processar um bilhão de combinações por segundo, ah, pensa, quanto tempo ganharias, esse teu ábaco eletrónico demoraria catorze mil bilhões de bilhões de milénios! Mas na verdade o verdadeiro nome de Deus, seu nome secreto, o da Torah, é tão longo quanto ela e não há máquina no mundo capaz de esgotar as permutações, pois a Torah já é em si mesma o resultado de uma permutação com repetições das vinte e sete letras, e a arte da Temurah não ensina que devas permutar as vinte e sete letras do alfabeto mas todos os signos da Torah, onde cada signo vale como se fosse uma letra independente, mesmo se aparece infinitas outras vezes em outras tantas páginas, como se disséssemos que os dois hau do nome de Ihvh valessem por duas letras. Assim sendo, se quiseres calcular as permutações possíveis de todos os signos da Torah inteira, nem todos os zeros do mundo te seriam bastantes. Experimenta, experimenta com a tua miserável maquininha de contabilistas. A Máquina existe, na verdade, mas não foi produzida no teu vale de silicone, é a santa Cabala ou Tradição, e os rabinos vêm fazendo há séculos aquilo que máquina alguma poderá fazer e esperemos não faça nunca. Porque, quando a combinatória fosse alcançada, o resultado teria que permanecer secreto senão o universo teria cessado o seu ciclo, e fulguraríamos imémores na glória do grande Metátron. Amém, dizia Jacopo Belbo». In Umberto Eco, O Pêndulo de Foucault, 1988, Sicidea, Difel, 2008, ISBN 978-846-125-726-3.

Cortesia de Sisidea/Difel/JDACT