terça-feira, 1 de outubro de 2019

A Filha do Papa. Luís Miguel Rocha. «… bugigangas carimbadas, na sua maioria, com o rosto de Bento XVI e também de João Paulo II. As esplanadas importunavam os passeios, ora estreitos, ora largos, sem regra, à boa maneira romana»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Pousou o papel em cima da secretária e entrelaçou os dedos uns nos outros, num gesto de cogitação. Matutava o passo seguinte. Essa autorização terá de passar, obrigatoriamente, pelo Santo Padre. Com… pre… endo per… feitamente. O pé de John tornou a bater no chão num ritmo frenético que só os seus nervos conheciam. A mão percutia no braço da cadeira. Caso seja autorizado, prosseguiu o piemontês, terá de assinar um acordo de confidencialidade sobre tudo aquilo que vier a ver e a ouvir. Tenha em consideração que não estou, de maneira alguma, a garantir uma resposta positiva do Santo Padre. John recusou aquela condição. O seu trabalho visava a publicação e não podia pactuar com acordos de confidencialidade. Aquela história estava a esgotar-lhe a paciência. Mais valia recusarem o pedido de uma vez, em lugar de imporem condições impossíveis e fazê-lo perder tempo. Tarcísio manteve uma expressão pensativa. Avanços, recuos, passos pequenos mas firmes, tudo na Igreja requeria muita ponderação. Falarei com o Santo Padre. Terá a nossa resposta amanhã. John levantou-se da cadeira, fez um aceno em jeito de cumprimento com a cabeça e avançou para a porta. Tarcísio manteve-se sentado. Não esqueça, doutor Scott, relembrou o piemontês. Este encontro não aconteceu.
Con… conseguirei vi… viver com isso, Emi… Eminência. Bom dia. Tarcísio assistiu à saída do jornalista americano e pegou no telefone. Acredito que consiga viver com isso, doutor Scott. Mas tenho muitas dúvidas que o deixem, murmurou para si mesmo quando alguém atendeu. Chamem-me o intendente Comte.

Para o Francês o segredo era a respiração. Encher os pulmões de ar e guardá-lo durante o tempo necessário para não interferir com o mecanismo. Havia outros factores a ter em conta, claro, mas a quantidade de ar que se inalava e a escolha do momento certo para o fazer era o mais importante. Outros diriam que o factor crucial era a distância, ou as condições atmosféricas ou, ainda, o mecanismo que se usava para o efeito, o foco do anel da objectiva ou o ajuste de paralaxe. Estavam errados, completamente errados e, por isso, tinham morrido quase todos, e os que ainda não haviam entregado a alma ao Criador, fá-lo-iam antes dele. No ramo de trabalho do Francês, não havia margem para erro. Era matar ou morrer, literalmente. Para ele, aqueles que não sabiam viver deviam ter o mérito de morrer e o homicídio era a forma mais extrema de censura. O Francês considerava-se isso mesmo, um censor. O pior de tudo era a espera. Eram muitas horas à espera. Já devia estar habituado. Afinal, passava mais tempo à espera do que a contemplar o fruto do seu trabalho. Na verdade, o regozijo da missão cumprida não durava mais que uns instantes, uns simples microssegundos, praticamente o clímax de um orgasmo. Os dinheiros eram transferidos para a sua conta especial e passava à espera seguinte, entregue ao seu vício. Mais horas, dias, semanas, vigilante, silencioso, cauteloso, até ao próximo trabalho. Poder-se-ia cognominar de profissional da espera mas, apesar da imensa experiência, nunca se habituara.
Preferia Londres, Madrid, Roma, Sardenha ou qualquer outra ilha mediterrânica. Nunca Paris, Marselha ou mesmo Mónaco. Côte d’Azur estava completamente fora de questão. Avaliava muito bem os seus alvos antes de atacar. Demorava o tempo que fosse preciso. Os seus parcos clientes conheciam o seu modus operandi e não se queixavam. O importante era um trabalho bem feito e esse, o Francês, executava-o como ninguém. Estava em Roma há três dias e aproveitara para passear pela cidade. O frio era um pormenor de somenos importância numa cidade tão civilizacional. Alugara um Mazda 3, nada vistoso, perfeitamente comum. A morada fora facultada pelo cliente e fez questão de realizar uma ligeira inspecção visual logo no primeiro dia. Nada de muito invasivo. De máquina fotográfica encostada ao peito, a alça suspensa pelo pescoço, visitou o local e ficou maravilhado com os frescos, o mármore, as gárgulas… A rua era comprida, com prédios residenciais, edifícios públicos e hotéis de ambos os lados. Muito comércio, com ofertas variadas para saciar o corpo, o estômago e os olhos. Várias lojas de artigos religiosos, como não podia deixar de ser, com as montras pejadas de santos, porta-chaves, postais, bandeiras, lenços, pratos, chávenas, não esquecendo as réplicas em vários tamanhos e materiais dos principais monumentos romanos e vaticanos, entre outras bugigangas carimbadas, na sua maioria, com o rosto de Bento XVI e também de João Paulo II. As esplanadas importunavam os passeios, ora estreitos, ora largos, sem regra, à boa maneira romana». In Luís Miguel Rocha, A Filha do Papa, Porto Editora, 2013, ISBN 978-972-004-411-2.

Cortesia de PEditora/JDACT