quarta-feira, 16 de outubro de 2019

Mil Dias na Toscânia. Marlena Blasi. «Deixamos Veneza para trás sob a luz pálida e violácea da aurora e seguimos os quatro albaneses amontoados no grande caminhão azul da Gondrand que transportava todos os nossos bens materiais»


Cortesia de wukupedia e jdact

«(…) Ainda sem ter tomado banho depois da viagem da manhã e do trabalho da tarde, estou feliz e salgada como as flores de abobrinha que ofereço às pessoas, que as aceitam sem cerimónia. Sinto a mesma familiaridade à medida que cada um sorri ou me dá um tapinha nas costas, dizendo grazie, bella, obrigado, minha linda, como se eu tivesse lhes servido flores de abobrinha quentes e crocantes a vida toda. Gosto disso. Por um instante, penso em sair correndo com a cesta para um canto escuro da piazza para devorar eu mesma as flores restantes, os olhos semicerrados num êxtase sensual em meio às sombras. Mas não faço isso. Algumas pessoas não conseguem esperar que eu chegue até elas e se aproximam, pegam uma flor enquanto tomam um gole de vinho ou falam com alguém olhando para trás. As pessoas estão se reunindo à minha volta, aves de rapina que só param de dar os seus rasantes quando sobram apenas migalhas crocantes e ainda quentes, as quais recolho com a ponta do dedo antes de levá-lo à boca. Dirijo-me a um pequeno grupo que está elogiando o dono da fazenda onde aquelas delícias foram colhidas pela manhã. Ele diz que haverá mais no dia seguinte, que, se alguém quiser pegar algumas, vai deixar um carregamento de flores na casa de Sérgio às sete horas.
Seguem-se três conversas separadas e simultâneas sobre a melhor maneira de preparar flores de abobrinha. Recheá-las ou não? Recheá-las com mozzarella e anchovas salgadas, recheá-las com uma pequena fatia de ricotta salata, recheá-las com ricota fresca e algumas folhas de manjericão, preparar a mistura para empanar com cerveja ou com vinho branco, acrescentar azeite ou não? E a pergunta mais importante de todas: fritar as flores em óleo de amendoim ou em azeite extra-virgem? Distraída por essas conversas, não ouço alguém me chamando do outro lado da pequena piazza. Chou-Chou, diz Bice, batendo exasperadamente o pé esquerdo na entrada do bar, com outra bandeja sobre os braços esticados. Dessa vez, navegando por entre a multidão com mais agilidade, distribuo as flores fumegantes em tempo recorde. Embora eu não tenha sido apresentada à maioria daquelas pessoas, todas parecem saber que Fernando e eu acabamos de nos mudar para a casa dos Lucci, descendo a colina. Essa informação é apenas um primeiro indício da eficiência do sistema de comunicação interna do vilarejo, activado, sem dúvida, pelo pequeno batalhão de san cascianesi que se reuniram mais cedo na porta de nossa casa para nos dar as boas-vindas. Uma coisa leva a outra, mas..., como um aperitivo de boas-vindas se transformou num grande jantar e por que estou segurando com tanta força esta bandeja vazia?
Deixamos Veneza para trás sob a luz pálida e violácea da aurora e seguimos os quatro albaneses amontoados no grande caminhão azul da Gondrand que transportava todos os nossos bens materiais. Estamos nos mudando para a Toscana. A 11 quilómetros do nosso destino, um grupo de elegantes carabinieri usando botas altas e carregando metralhadoras automáticas fez nosso pequeno comboio parar no entroncamento com a estrada 321. Fomos detidos, interrogados e revistados durante quase duas horas. Dois dos quatro albaneses, sem documentos, foram presos. Dissemos à polícia militar que estávamos nos mudando para uma das casas de fazenda dos Lucci e que precisaríamos da ajuda, e da força, de todos os quatro. Eles entraram na sua van e falaram pelo rádio. Ficaram muito tempo lá dentro. Quando saíram do veículo, conversaram mais uma vez, no acostamento. Alguns dizem que os carabinieri são escolhidos por causa de sua beleza física, que eles representam a glória do Estado italiano. Aqueles policiais certamente faziam jus a essas afirmações; as suas sobrancelhas escuras e olhos claros foram uma distracção estética durante a espera. Finalmente, um deles disse: muito bem, mas é nosso dever acompanhá-los.
Formando agora uma carreata mais grandiosa, despertámos a desconfiança dos poucos veículos de fazenda com que cruzamos até o grande caminhão azul e o furgão da polícia pararem atrás do nosso velho BMW no quintal da casa. Mãos à obra. Fizemos um acordo bastante claro com a signora Lucci de que a casa estaria limpa e vazia. Mas ela não está nem uma coisa nem outra. À medida que os albaneses clandestinos começam a trazer os nossos pertences para dentro, peço que os carabinieri me ajudem a levar para fora os presentes de boas-vindas da signora, todos inegavelmente sob a forma de lixo: armários com portas amassadas, mesas e cadeiras que, para ficarem em pé, estão engenhosamente apoiadas umas nas outras. Há seis beliches. Deixamos tudo no celeiro. No nosso quarto, estou tirando o pó de uma bela gravura de uma estradinha ladeada por ciprestes com uma moldura de cobre batido. O quadro balança na sua alça de arame e atrás dele descubro um cofre embutido na parede. Esta casa, um estábulo que mal foi restaurado, sem aquecimento central, sem telefone e com uma instalação elétrica que não é suficiente nem para um eremita cego, tem um cofre. E não é um daqueles pequenos, encontrados em quartos de hotel, mas um objecto grandioso, de aparência formal, com duas fechaduras e um relógio. Chamo Fernando para dar uma olhada. Obviamente é novo, algo que os Lucci instalaram durante a reforma. Acho que não devemos usá-lo, diz Fernando. Mas para que eles precisariam de um cofre aqui? Um na vila onde moram não seria suficiente? Acho que deve ser para uso dos inquilinos. Vamos ver se conseguimos abri-lo». In Marlena Blasi, Mil Dias na Toscânia, 2004, Editora Sextante, 2011, ISBN 978-857-542-650-0.

Cortesia de ESextante/JDACT