segunda-feira, 14 de outubro de 2019

Tópicos para a História da Civilização. Ideias no Gharb al-Ândalus. António B. Coelho. «Acaso te deixarás conduzir pela tristeza até à morte quando o alaúde e o vinho fresco estão aí à tua espera?»

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Poetas Santões e Filósofos do Ocidente do Ocidente
«(…) Um outro texto, Al-Mann Bil-Imama do bejense Ibn Sahib Al-Sala aborda a história dos almóadas e de algum modo um pouco da história política no actual Alentejo e Algarve. Escreveu também o Kitab al-Muridin (Livro dos Adeptos), hoje perdido e que seria indispensável para o estudo do movimento dos muridines no sul do nosso território e no ocidente peninsular.
Os poetas perdem-se como abelhas ao redor do favo do poder. Mas alguns erguem-se a grande altura. Cantam os saraus nocturnos, o vinho, o amor, os jardins, a água, a paisagem humanizada. Aqui e ali ensaiam a especulação filosófica. No século XI sopra uma brisa de audácia e de liberdade com toda a ambiguidade que esta palavra carrega. Almutamide (+1095), natural de Beja, governador de Silves e rei de Sevilha entre 1069 e 1091, rodeou-se de literatos, historiadores, poetas como o seu amigo Ibn Amar, a sua mulher Itimad Romaiquia (ex-escrava de Romaiq) e seu filho Arradi ibn al-Mutamid, governador de Mértola.
A vida do rei poeta originou toda uma epopeia. Na batalha de Zalaca foi ferido seis vezes e não arredou pé até à vitória. Pouco depois, os seus aliados almorávidas, com o favor dos alfaquis de Sevilha, conquistaram a cidade e degolaram-lhe dois filhos à sua vista. A nora Zaida tornou-se concubina de Afonso VI de Leão e de Castela enquanto o filho Arradi era morto à traição pelos almorávidas em Mértola. Almutamide morre cativo em Agmat, no Atlas sobranceiro a Marraquexe. A caminho do desterro escreveu o poema:

Saíram para pedir a chuva e disse-lhes:
Pudessem
as minhas lágrimas substituir a chuva
que reclamais.
Responderam-me: é verdade, nas tuas lágrimas
encontraríamos
o bastante. Mas de que nos serviriam elas
se estão misturadas com sangue?

Noutro dos seus poemas, propõe uma ética dos prazeres, que certamente haveria de chocar os alfaquis, ao mesmo tempo que esclarecia a sua ideia do sábio:

Acaso te deixarás conduzir pela tristeza
até à morte
quando o alaúde e o vinho fresco
estão aí à tua espera?
Que as preocupações não se tornem
senhoras de ti
enquanto a taça for uma espada cintilante
na tua mão.
Conduzir-se como sage é deixar-se assaltar
pelas preocupações até ao mais fundo
de si mesmo:
Ser sage para mim é não ser sage.

Ibn Mucana Alisbuni Alcabdaq (o lisboeta, o de Alcabideche) (+pouco depois de 1068) cantou os bois de lavra, os javalis que assolavam as hortas, as abóboras, as cebolas, os moinhos de vento». In António Borges Coelho, Tópicos para a História da Civilização e das Ideias no Gharb al-Ândalus, Instituto Camões, Colecção Lazúli, 1999, IAG-Artes Gráficas, ISBN 972-566-205-9.

Cortesia de ICamões/JDACT