segunda-feira, 21 de outubro de 2019

Marina. Carlos Ruiz Zafón. «Uma eternidade. Uma brisa leve roçava os ciprestes. Duas pombas brancas esvoaçavam entre os túmulos. Uma formiga subia pela perna da minha calça. E mais nada»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Seguindo as suas instruções, nos acomodámos numa espécie deterraço, discreto e elevado, na ala norte do terreno. De lá, tínhamos uma boa visão do solitário cemitério. Ficámos sentados em silêncio contemplando tumbas e flores murchas. Marina não dava um pio e, depois de alguns minutos, comecei a ficar impaciente. O único mistério que via em tudo aquilo era saber porque diabos estávamos fazendo ali. Isso está meio morto, não?, sugeri, consciente da ironia. A paciência é a mãe da ciência, replicou Marina. E a madrinha da demência, devolvi. Não tem nada de nada aqui. Marina deu-me um olhar que não consegui decifrar. Está enganado. Aqui estão as lembranças de centenas de pessoas, as suas vidas, os seus sentimentos, as suas ilusões, a sua ausência, os sonhos que nunca conseguiram realizar, as decepções, os enganos e os amores não correspondidos que envenenaram as suas vidas... Tudo isso está aqui, preso para sempre. Olhei para ela intrigado e um tanto intimidado, embora não soubesse exatacmente do que estava filando. Fosse como fosse, era importante para ela. Ninguém entende nada da vida enquanto não entender a morte, acrescentou Marina.
Mais uma vez, fiquei sem entender direito o sentido das suas palavras. A verdade é que não penso muito nisso, disse. Quer dizer, na morte. Marina sacudiu a cabeça como um médico que detecta sintomas de uma enfermidade fatal. Quer dizer que você é um daqueles inocentes desprevenidos..., comentou com um certo ar de cilada. Os desprevenidos? Agora sim estava perdido. Cem por cento perdido. Marina deixou o olhar deslizar para longe e o seu rosto adquiriu um tom de seriedade que fazia com que parecesse mais velha. Eu estava completamente hipnotizado por ela. Suponho que nunca ouviu falar da lenda, começou Marina. Lenda?
Já imaginava..., sentenciou. O caso é que, segundo dizem, a morte tem emissários que andam pelas ruas em busca dos ignorantes e dos cabeças-de-vento que não pensam nela. Ao dizer isso, cravou as suas pupilas nas minhas. Quando um desses infelizes se encontra com um emissário da morte, continuou Marina, é levado sem saber para uma armadilha. Uma porta do inferno. Esses emissários andam com o rosto coberto para esconder que não têm olhos, mas apenas dois buracos negros habitados por vermes. Quando já não há mais escapatória, o emissário revela o seu rosto e a vítima compreende o horror que a espera... Suas palavras flutuaram com o eco, enquanto meu estômago encolhia. Foi então que Marina deixou escapar aquele seu sorriso malicioso. Sorriso de gato. Está zombando de mim, disse eu, finalmente. E claro. Passaram-se mais cinco ou dez minutos em silêncio, talvez mais.
Uma eternidade. Uma brisa leve roçava os ciprestes. Duas pombas brancas esvoaçavam entre os túmulos. Uma formiga subia pela perna da minha calça. E mais nada. Logo senti que a minha perna estava ficando dormente e fiquei com medo que o cérebro seguisse o mesmo caminho. Estava quase protestando quando Marina levantou a mão, obrigando-me a calar antes mesmo de ter aberto a boca. Em seguida, apontou para o portão do cemitério. Alguém acabava de entrar. O vulto parecia ser uma dama coberta por uma capa de veludo preto. Um capuz escondia o rosto. As mãos, cruzadas no peito, mergulhadas em luvas da mesma cor da capa, que ia até ao chão e não permitia que se vissem os pés. De onde estávamos, parecia que aquela figura sem rosto se deslocava sem tocar o solo. Por alguma razão, senti um calafrio. Quem...?, sussurrei.
Pssst, cortou Marina. Escondidos atrás das colunas do terraço, ficamos espiando a dama de negro. Ela avançava entre os túmulos como uma aparição, segurando uma rosa vermelha entre os dedos enluvados. A flor parecia uma ferida recém-aberta esculpida a punhal. A mulher aproximou-se de uma lápide que ficava logo por baixo do nosso posto de observação e parou, de costas para nós. Pela primeira vez, notei que aquele túmulo, ao contrário de todos os outros, não tinha nenhum nome. Exibia apenas uma inscrição gravada no mármore: um símbolo que parecia representar um insecto, uma borboleta negra com as asas abertas». In Carlos Ruiz Zafón, Marina, 1999, Planeta Editora, 2010, ISBN 978-989-657-119.1

Cortesia de PlanetaE/JDACT