sábado, 5 de outubro de 2019

A Ponte dos Suspiros. Fernando Campos. «Aos catorze de Junho da desventurada era de mil e quinhentos e setenta e oito, saiu el-rei dos seus paços da Ribeira com toda a monarquia deste reino e se foi logo embarcar na sua galé real…»

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O galeão S. Mateus
«(…) Juan Silva fazia as últimas tentativas de lhe acalmar o ímpeto. Compreendia, respondia-lhe Sebastião, que houvesse alguns que deixariam de participar na empresa, se lhes mostrassem os inconvenientes, mas, posto o negócio no ponto a que chegara, onde no mundo estava homem que volvesse atrás? Entendesse o embaixador que não era tempo de admitir conselhos...
... elrey se arde bibo..., por respeito algum suspenderia a jornada de Alarache nem haveria de diferir uma hora nem meia o seu embarque e partida..., ...el sabado nos embarcamos..., como homem de bem, não me provi nem fiz nada de quanto é necessário para ir com ele..., parto para a guerra, embaixador de Sua Majestade, sem armas nem tendas..., queda-me a esperança de morrer dentro de seis dias... Uma romaria Lisboa, arraial de ilusão e ligeireza. À miséria dos soldados vindos de Viana, do Porto, de Aveiro, de Buarcos, recrutados à força, contrariados, arrancados aos seus e à enxada, seu ganha-pão, metidos tristes aos magotes nos porões dos barcos, atravessava-se a gralhada, movimento, cor, por terreiros, pátios, ruas, bodegas, bordéis, de alemães, flamengos e valões de Martim de Borgonha, hereges, veteranos e calvinistas, acompanhados das mulheres, amantes e filhos, os seiscentos italianos de Tomás Stukeley, marquês de Leinster, a quem uma tempestade obrigou a acolher-se a Lisboa e o rei aliciou com grossa quantia para desviar a sua missão de ir acudir aos católicos irlandeses, os castelhanos do porto de Santa Maria. Sobre o Tejo não se amanhavam bem as gaivotas, que voavam de largo, ante tanto tremular colorido de bandeiras, pendões e galhardetes e não se viam golfinhos a saltarem nas águas, que lhes não deixavam espaço as zabras, barcas, barinéis, galés, batelões, urcas e caravelas e naus em que se embarcava soldadesca, armas, provisões, lenha, água, palha para as cavalgaduras... O terço dos aventureiros, fidalgos portugueses, dava nas vistas no luxo dos vestidos, no lavrado das armas, no atavio de jóias, na riqueza de baixelas, no requinte de manjares e vinhos, na corte de criados, no fausto de tendas de campanha franjadas de ouro, nas colgaduras de seda...
Aos catorze de Junho da desventurada era de mil e quinhentos e setenta e oito, saiu el-rei dos seus paços da Ribeira com toda a monarquia deste reino e se foi logo embarcar na sua galé real e outro dia, que foram vinte e cinco, reunida toda a armada, partiu barra fora e com próspera viagem seguiu até Lagos, no reino do Algarve, e em dois dias e meio, com vento em popa, chegou à baía de Cádis, onde ficou três dias a aguardar que se juntasse toda aquela esquadra, que, se fosse tão galharda como aparentava, dizia o embaixador Juan Silva, pudieramos ir confiados de qualquer empresa, pero, conociendola bien, mas se hade confiar en la ignorancia o impossibilidad de los enemigos que en las fuerzas que llevamos... Los marineros dicen que es hermosa cosa de.navios si no viniesen cargados de marmelada... Como podia ser tamanha cegueira?, perguntava abismado o arcebispo. O cónego Battista esse, de tão incrédulo, não tugia nem mugia. Escutai, Eminência, escutai. O próprio inimigo me escreveu a desenganar-me..., não sei qual a causa e razão, rei Sebastião, que te moveu a quereres guerra comigo tão injusta. Que agravo tu ou os teus tendes de mim?...
… aconselhava-me a não confiar no xarife, dizia-me que mais queria a minha amizade e vizinhança que a desse perro, que nos víssemos eu e ele irmãmente... Tu me vens buscar sem razão e queres guerra comigo injusta... Sabe que isto há-de custar mais vidas do que pode caber de grãos de mostarda num grande saco. És moço e cavaleiro, tens quem te aconselhe. Faze-o para tua segurança...» In Fernando Campos, A Ponte dos Suspiros, 1999, Difel SA, 2000, ISBN 978-972-290-806-1.

Cortesia de Difel/JDACT