domingo, 13 de outubro de 2019

A Canção de Aquiles. Madeline Miller. «Meu pai quer que estes sejam os melhores jogos da sua geração. Lembro-me bem dos corredores, os seus corpos bronzeados e besuntados de azeite…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Meu pai era rei e filho de reis. Homem de baixa estatura, como a maioria de nós, mas de ombros imponentes e com a constituição de um touro. Desposou minha mãe quando ela tinha 14 anos e recebera das sacerdotisas a garantia de que seria fértil. Foi um bom arranjo: a noiva não passava de uma criança e a fortuna do seu pai iria para o marido. Ele só descobriu que ela era meio parva no dia do casamento. O pai insistira em manter o seu rosto velado até à cerimónia e o noivo não se importara. Se a esposa fosse feia, sempre haveria escravas e jovens criados. Dizem que minha mãe sorriu quando, por fim, o véu foi retirado. Souberam então que ela era mesmo bastante tola; noivas não sorriem. Quando nasci, um menino, meu pai me tirou dos braços de minha mãe e me entregou a uma ama. A parteira, sentindo pena da minha mãe, deu-lhe um travesseiro para que o envolvesse nos seus braços, já que ela não podia abraçar-me. E minha mãe o abraçou. Ela nem notou a troca que havia sido feita. Logo me tornei uma decepção: pequeno, franzino. Não era esperto. Não era forte. Não sabia cantar. O melhor que se poderia dizer de mim era que tinha saúde. Os resfriados e as cólicas que afligiam as outras crianças não me molestavam. Isso só deixou meu pai ainda mais desconfiado. Seria eu um mutante, uma criatura não humana? Ele me olhava com ar zangado. Minha mão tremia, sentindo o seu olhar. E minha mãe ficava lá, babando vinho sobre si mesma.
Tenho 5 anos, e é a vez de meu pai patrocinar os jogos. Homens vêm de longe, até da Tessália e de Esparta, e os nossos armazéns ficam repletos de ouro. Uma centena de servos trabalha durante vinte dias, preparando a pista de corrida e limpando-a para que fique livre de pedras. Meu pai quer que estes sejam os melhores jogos da sua geração. Lembro-me bem dos corredores, os seus corpos bronzeados e besuntados de azeite, estirando-se ao sol. Misturam-se homens de ombros largos, jovens imberbes e meninos, em cujas panturrilhas se desenham os músculos vigorosos. O touro foi morto, derramando as últimas gotas de sangue na areia e em vasos de bronze escuro. Morreu suavemente, bom augúrio para os jogos que logo começarão.
Os corredores se reúnem diante do trono em que o meu pai e eu nos sentámos, tendo em volta os prémios que serão dados aos vitoriosos. Há taças de ouro para misturar o vinho, trípodes de bronze forjado, lanças de freixo com preciosas pontas de ferro. Porém o prémio de verdade está nas minhas mãos: uma coroa de folhas de louro, recém-colhidas, lustradas pelo meu polegar. Meu pai relutara em deixá-la comigo. Mas tranquilizou-se, pois eu só iria segurá-la. Os mais novos correrão primeiro. Esfregando os pés na areia, eles aguardam o sinal do sacerdote. Ainda estão na primeira fase de crescimento, os seus ossos longos e finos desapontam sob a pele esticada. Meus olhos surpreendem uma cabeça loura no meio de dezenas de cabeleiras negras, desgrenhadas. Inclino-me para ver melhor. O cabelo reluz como mel ao sol e, por entre as mechas, um brilho de ouro, o diadema de um príncipe. É mais baixo que os outros, e o seu corpo, ao contrário do deles, ainda tem os contornos roliços da infância. O cabelo comprido está preso atrás com uma tira de couro, contrastando com a pele nua e escura das costas. Quando ele se vira, percebo que seu rosto é sério como o de um adulto. Depois que o sacerdote golpeia o chão com o ceptro, ele se adianta aos corpos vigorosos dos garotos mais velhos. Move-se com desenvoltura, tem os calcanhares rosados como línguas. Ele vence. Meu pai ergue a coroa do meu colo e coloca-a na cabeça do garoto. As folhas parecem quase negras contra a luminosidade de seus cabelos. O pai do vencedor, Peleu, vem buscá-lo sorridente e orgulhoso. O reino de Peleu é menor que o nosso, mas conta-se que a sua esposa é uma deusa e o povo o ama. Meu pai observa com inveja. A mulher dele é tola, e o filho, lento demais para competir até mesmo no grupo mais jovem. Então ele se vira para mim e diz: é assim que um filho deve ser. Sinto as mãos vazias sem a coroa. Vejo o rei Peleu beijar o seu filho, que atira a coroa para o alto e apanha-a novamente. Está sorrindo, o seu rosto tem o brilho da vitória». In Madeline Miller, A Canção de Aquiles, 2011 / 2012, Editora Jangada, 2015, ISBN-978-856-485-037-8.

Cortesia de EJangada/JDACT