terça-feira, 1 de outubro de 2019

A Mentira Sagrada. Luís Miguel Rocha. «Da janela de onde controlava os vizinhos, no bom sentido da palavra, Shimon conseguia ver a sua amada cidade de Jerusalém, o centro do mundo. Neste entardecer Shimon não apareceu à janela»

Cortesia de wikipedia e jdact

Vaticano. 19 de Abril de 2005
«(…) Rafael virou-lhe as costas e suspirou. Jacopo não o viu cerrar os olhos. Se pudesse chorava, mas já não sabia como. A vida, por vezes, seca os olhos a alguns, fazendo com que chorem sangue por dentro em vez de água por fora. Jacopo não era o tipo de homem que pudesse ser apelidado e sensível às emoções humanas. Sessenta e um anos de vida haviam colocado uma capa de racionalidade, escudando-o das emoções humanas. Ou assim gostava de pensar. Rafael não podia fazê-lo, era padre, ainda assim o cabr… mais frio que conhecia. Tens mais informações?, perguntou Rafael, novamente virado para ele, encarando-o com olhos sérios e maus. Alguém lhe ligou a meio da noite para falar de um pergaminho. Isto foi o que disse a Irene. Apanhou um voo de manhã e... Deixou supor o resto. Onde?, quis saber o padre. Paris. Num antigo armazém-frigorífico, em Saint-Ouen. Rafael continuou a olhá-lo friamente e depois deixou-o dirigindo-se para a saída. Paris será.
Shimon David era um vizinho zeloso ou pelo menos assim gostava de pensar. Os vizinhos não usavam a mesma expressão, trocavam-na por outra, menos elogiosa, mas que ele desconhecia e, por isso, não o afectava. Para eles Shimon era um velho curioso, sempre atento aos menores movimentos da rua e da vizinhança. Se alguém quisesse saber se determinada pessoa estava em casa ou se iria demorar a chegar, Shimon era o vizinho certo a quem perguntar. Até pelo que trajavam conseguia descortinar que destino levavam. O limite da sua sabedoria ia de uma ponta à outra da rua e nada mais lhe importava. Viúvo, aposentara-se havia mais de duas décadas. Toda a sua vida fora carteiro. Podia dizer-se muito de uma pessoa pela correspondência que recebia. Shimon sabia muita coisa dos seus vizinhos, mais do que alguma vez eles podiam suspeitar porque ninguém queria saber do carteiro. A rua situava-se nos arredores da Cidade Santa. Ao longe, no meio de uma amálgama de edifícios e telhados, conseguia vislumbrar-se, quem soubesse o que queria ver, o reflexo dourado da cúpula da Rocha, bem lá no interior da muralha.
Da janela de onde controlava os vizinhos, no bom sentido da palavra, Shimon conseguia ver a sua amada cidade de Jerusalém, o centro do mundo. Neste entardecer Shimon não apareceu à janela. Os vizinhos chegavam cansados do trabalho e nem deram por nada. Entraram nas suas residências como sempre o faziam sem olhar para trás, desejosos por algumas horas de paz e sossego, em alguns casos, ou guerra e confusão, noutros. Tanto se lhes fazia se Shimon estava à janela ou não. Movimentos na casa da defunta Marian, uma velhota de 90 anos que morrera havia dois meses e não tinha herdeiros, chamara a atenção do zeloso judeu. Talvez alguém tivesse comprado a casa que ficava ao lado da sua. O certo é que não houve mudanças nem reparações. Os três homens que chegaram numa carrinha branca entraram na casa e instalaram-se como se vivessem ali desde sempre. A situação não inspirava confiança a Shimon, daí que, como zelador, auto-incumbido, da rua, tinha de saber mais. A informação era tudo. Conhecia muito bem a casa de Marian. Entrara nela muitas vezes quando ela era viva, rezingona e muito mexeriqueira. Mas ele gostava de conversar com ela.
Sempre tinha com quem falar. O primeiro erro de Shimon foi não bater à porta da frente e tentar uma abordagem furtiva. Contornou a casa, de rés-do-chão e primeiro andar, pé ante pé, tentando não fazer barulho. A primeira janela era da sala e não se atreveu a olhar. Era uma divisão demasiado comum para estar vazia e Shimon não quis arriscar. Não porque sentisse que estava a fazer algo de mal, mas por dever de zelar pelo património da vizinha que, ainda que não se importasse, deveria ser entregue em perfeitas condições aos próximos donos, que até podiam ser estes, desde que Shimon o soubesse. A segunda janela era do quarto de Marian. Transferiu-o do primeiro andar quando percebeu que morreria mais depressa se tivesse de subir as escadas todas as noites para dormir. Ficava extenuada devido ao esforço. Marian era uma mulher muito pragmática. Mas não era hora de pensar nela. A missão era saber quem eram os intrusos. Se é que o eram. Podiam não passar de três bons rapazes, sem interesse nenhum, a acrescentar à lista de novos vizinhos. Seria uma variação, já que os vizinhos vinham, cada vez mais, a diminuir, por motivos profissionais ou de falecimento». In Luís Miguel Rocha, A Mentira Sagrada, Porto Editora, 2011, ISBN 978-972-004-325-2.

Cortesia de PEditora/JDACT