sábado, 12 de outubro de 2019

A Ceia Secreta. Javier Sierra. «Naturalmente, obedeci, que outra coisa podia fazer? Cheguei a Milão passada a noite dos Reis Magos»

Cortesia de wikipedia e jdact

O Áugure
«(…) O mestre indicou o pergaminho que encabeçava aqueles papéis. Nele, em caracteres grandes escritos com tinta vermelha, lia-se o enigma que continha a assinatura de nosso informante. Eu o havia visto muitas vezes, fechava cada uma das cartas do Áugure; mas, até esse momento, não lhe havia dado atenção. A minha vista quis se ofuscar ao pairar sobre aquelas sete linhas e sentir que se haviam transformado no meu principal problema. Diziam:

Oculos ėjus ḋinumera,
ṡed noli voltum ȧdspicere.
In latere nominis
mei notam rinvenies.
Contemplari et contemplata
aliis ṫradere.
Veritas

Naturalmente, obedeci, que outra coisa podia fazer? Cheguei a Milão passada a noite dos Reis Magos. Era uma dessas manhãs de sábado nas quais o brilho da neve nos cega e o ar limpo esfria sem piedade as nossas entranhas. Eu havia cavalgado sem descanso para chegar a meu destino, dormindo três a quatro horas em pousadas nauseabundas, intumescido e húmido em razão de uma viagem de três dias no meio do Inverno mais cruel de que tinha lembrança. Mas nada disso importava. Milão, a capital da Lombardia, a sede de intrigas palacianas e disputas territoriais com a França e os condados vizinhos, sobre a qual eu tanto havia estudado, já descansava aos pés da minha montaria. O lugar era impressionante. A cidade dos Sforza, a maior ao sul dos Alpes, ocupava o dobro da extensão de Roma; oito grandes portas franqueavam uma muralha impenetrável que contornava uma urbe de planta redonda que, vista do céu, devia parecer o escudo de um guerreiro gigantesco. Contudo, não foram as suas defesas que me impressionaram: aquele era um burgo novo, limpo, que transmitia uma intensa sensação de ordem. Os cidadãos não urinavam em cada esquina, como em Roma, nem as prostitutas assaltavam os transeuntes, oferecendo-se. Ali, cada canto, cada casa, cada edifício público parecia pensado para uma função suprema. Até a sua orgulhosa catedral, de aspecto frágil e esquelético, oposta em tudo aos maciços edifícios do Sul italiano, derramava as suas benéficas influências sobre o vale. Vista das colinas, Milão parecia o último canto do mundo onde pudessem se arraigar a desordem e o pecado». In Javier Sierra, A Ceia Secreta, 2013, Editora Planeta, 2014, ISBN 978-854-220-327-1.

Cortesia de EPlaneta/JDACT