domingo, 13 de outubro de 2019

A Caminho de Jerusalém. Jan Guillou. «Vamos andar devagar, na direcção das brincadeiras, para não ficarmos aqui quietos, como se déssemos a entender que estamos zangados um com o outro. Eu vou explicar tudo…»

Cortesia de wikipedia e jdact

As Cruzadas
«(…) Tal como havia previsto, ele parou de repente e olhou primeiro para o rosto dela, inquiridor, procurando por aquele sorriso que ela exibia ao falar brincando, à sua maneira toda especial. Mas ele entendeu logo que ela falava sério e, então, a raiva se apossou dele com tal intensidade que por pouco não lhe deu uma bofetada, que seria a primeira, se eles não estivessem entre amigos e inimigos e todo aquele povão. Você está fora de si, mulher! Se não fosse pelo facto de ter herdado Varnhem, ainda hoje estaria apodrecendo no mosteiro. E foi por causa de Varnhem que nos casámos. Foi no último momento que ele se conteve e acabou falando baixo, mas entre dentes, os lábios fortemente contraídos. Sim, isso é verdade, meu querido marido, respondeu ela, com o olhar virtuosamente baixo. Se eu não tivesse herdado Varnhem, os seus pais teriam escolhido outra pretendente. Nesse caso, é verdade, eu seria agora uma freira, mas é verdade também que nem Eskil nem essa nova vida que carrego abaixo do meu coração existiriam se não fosse por Varnhem. Magnus não respondeu. Parecia estar pensando na escolha das palavras certas para expressar a sua raiva. E, nesse momento, chegou Sot, trazendo pela mão Eskil, que imediatamente correu na frente e pegou a mão da sua mãe e começou a falar rápido e alto de tudo o que tinha visto lá dentro na catedral. Depois de ter sido obrigado a ficar calado e quieto por tanto tempo, ele falava agora como se as palavras jorrassem como a água de uma represa quando é aberta na Primavera, impossível de conter. Magnus pegou o seu filho nos braços, acariciou os seus cabelos com amor, ao mesmo tempo que encarava a esposa com hostilidade. Mas, de repente, ele largou o menino no chão e ordenou a Sot, quase que de maneira desagradável, que levasse Eskil para ver as brincadeiras e que logo em seguida se veriam de novo. Sot, surpresa, pegou o menino pela mão e puxou-o para longe, enquanto este, contrariado, choramingava e resistia. Mas, como você sabe, meu caro marido, continuou Sigrid, rápido, para que fosse ela a conduzir a conversa e não deixando que ele prosseguisse, encolerizado, antes voltasse ao bom senso e à calma. Sempre desejei receber Varnhem de presente de casamento, embora tenha sido eu que herdei a propriedade, e que consegui que a herança ficasse registada com o sigilo real, e ainda que, para mim, bastem o manto que trago sobre os meus ombros agora e apenas um pouco de ouro para me enfeitar. É, isso também é verdade, respondeu Magnus, ainda mal- humorado. Mas, ao mesmo tempo, Varnhem representa um terço do nosso património em comum, um terço que agora você acaba de tirar de Eskil. O que não consigo entender é como você foi capaz de fazer uma coisa dessas, mesmo que tivesse direito a fazê-lo.
Vamos andar devagar, na direcção das brincadeiras, para não ficarmos aqui quietos, como se déssemos a entender que estamos zangados um com o outro. Eu vou explicar tudo, disse ela, oferecendo o braço para ele. Magnus olhou em volta preocupado, reconheceu que ela tinha razão, sorriu com esforço e pegou-a pelo braço. Bem, disse ela, hesitante, após uns segundos. Vamos começar pelas coisas terrenas, as que mais enchem a sua cabeça neste momento. Evidentemente, vou levar para Arnäs todos os animais e os servos. Varnhem tem, sem dúvida, as melhores construções, mas Arnäs, por isso mesmo, vai possibilitar que a gente construa a partir do terreno, especialmente agora, quando vamos receber tantas mãos para trabalhar mais. Dessa maneira, vamos ter um lugar melhor para morar, em especial durante o Inverno. Mais animais significam mais barricas de carne salgada e mais peles, que agora já podemos mandar para Lõdõse de barco. Você sempre quis muito negociar com Lõdõse, e isso poderá fazer a partir de Arnäs, com muito mais facilidade, tanto no Inverno quanto no Verão. Isso seria mais difícil de fazer a partir de Varnhem. Magnus andava ao seu lado, silencioso e inclinado para a frente, mas ela viu que ele se tinha acalmado e começava a escutar com interesse, e então concluiu que não era mais uma questão de guerra com palavras. Viu tudo bem claro diante de si, como se tivesse levado muito tempo para planear as coisas, quando, na verdade, a ideia toda não tinha mais do que uma hora de vida. Mais peles e mais barricas com carne salgada para Lõdõse significavam mais moedas de prata, e mais moedas de prata significavam mais sementes. Mais sementes significavam que mais servos poderiam conquistar a sua liberdade através da preparação de novos campos para sementeira, de empréstimos em sementes pagas pelo dobro em centeio que, mandadas para Lõdõse, seriam trocadas por mais moedas de prata. E, então, seria possível encomendar as muralhas que Magnus sempre havia pensado em erguer, já que Arnäs era difícil de defender, em especial durante o Inverno, quando o gelo facilitava a passagem. Através da unificação de todos os esforços em Arnäs, em vez de os partilhar por dois lugares, seria possível para eles dois ficarem mais ricos, com todos os terrenos novos compondo uma propriedade maior, edificar um lar mais quente e seguro e deixar para Eskil uma herança maior do que se poderia imaginar antes. Quando chegaram bem na frente da multidão, tiveram que forçar a passagem, é claro, e, sem dar quaisquer sinais, Magnus se manteve silencioso e pensativo. Sot chegou aos pulos, trazendo Eskil nos braços, e levantou-o diante de si para que o povo pudesse ver as roupas dele e que, com ele nos braços, também ela, uma escrava, tinha direito a forçar a passagem, e aí o garoto pulou para o chão e colocou-se em frente da mãe que suavemente colocou as suas mãos nos seus ombros, acariciou a sua face e corrigiu a posição do gorro cheio de penas. Os artistas diante deles estavam vestidos com roupas engraçadas, de cores fortes e com pequenas campainhas penduradas nas pernas e nos punhos, de modo que todos os seus movimentos se misturavam com o som das campainhas». In Jan Guillou, A Caminho de Jerusalém, As Cruzadas, Editora Bertrand Brasil, Grupo Editorial Record, 2002, ISBN 978-852-860-896-0.

Cortesia de EBertrandB/GERecord/JDACT