sábado, 5 de outubro de 2019

A Ponte dos Suspiros. Fernando Campos. «Porque não matamos este louco que encaminha para a perdição o reino e todos nós?, segredou ao ouvido do barão de Alvito Fernando Noronha. Com uma mentira? Será mentira? El-rei não mente»

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O galeão S. Mateus
«(…) Queres deixar-nos a todos órfãos de rei e de legítimo herdeiro? Já pensaste se a fortuna nesta viagem te responder ao contrário do que cuidas?... Estátua de teimosia e de silêncio, o rei parece não ouvir. Não respondes? Não queres escutar a tua avó? Ah! Ingrato! Ingrato!... Doutor, doutor, não me sinto bem... Acorre o médico, a camareira: senhora! Senhora! Desfaleceu, disse o físico. Retira-se el-rei como sonâmbulo. Pela janela vê-se no céu o rasto lento de um cometa. Uma cauda de fogo!, aponta um cortesão. Estende-se para o Meio-Dia, Alteza, aonde fica a África, diz o astrólogo da corte. Sinal de bom augúrio para a vossa empresa. Sinal de mau agouro, rosna entre dentes um conselheiro velho.

Porque não matamos este louco que encaminha para a perdição o reino e todos nós?, segredou ao ouvido do barão de Alvito Fernando Noronha. Com uma mentira? Será mentira? El-rei não mente. Ia lá mentir em matéria de tanto cabedal! Sem serdes provocado?, estranhou o arcebispo. E prosseguistes em vosso desvairo? Escute Vossa Eminência e meça quanto desvairo... A rainha sua avó falecera a onze de Fevereiro e ele, conquanto se recolhesse a Penalonga em retiro de dó, como era de praxe, não deixara um só instante de cuidar dos preparativos para a campanha de África. Elrey esta mas caido que nunca en su proposito y así no se detuvo en Penalonga mas de tres o cuatro dias, escrevia a Filipe de Castela o embaixador em Lisboa Juan de Silva. Que loução anda o reizinho! Vestido de cores, com plumas... Sinal de loucura... Este moto hierve. El-rei arde!
Tão descontente, o povo espera milagre que impeça a jornada. Senhor! Senhor!, gritam os da cidade. Olhai o perigo que é de tua pessoa se não deixas sucessão. El-rei pára em sua montada, deixa que a multidão o cerque: sossegai, diz. Faço-vos saber que estou casado... Com quem, Senhor? Quem é tua mulher? Não vos posso de momento declarar com quem. A seu tempo o sabereis. Y así paso elrey este barranco! Vozes, vozes, vozes... Julgará Vossa Eminência que eu não tinha conhecimento delas? Tinha, sim..., e não fiz caso. Como não fiz caso dos conselhos do duque de Medina Celi, que esteve em Lisboa com sua mulher em Abril de setenta e oito.  Perguntei-lhe com grande instância se o rei Filipe de Espanha suspeitava que eu queria meter-me por terra dentro em África e perder o mar de vista. Sabeis que me respondeu? Que isso, mais do que arriscar-me, seria de certeza perder-me. Não lhe dei ouvidos..., e foi isso mesmo que aconteceu. Havia certamente entre os vossos pessoas experimentadas na guerra em África, na Índia e noutras partes. Poderíeis ter escolhido um bom general para a empresa...
João Mascarenhas poderia ser esse general. Conselheiro de Estado, era um excelente cavaleiro que defendeu Dio com valor. Servira muitos anos em África e na Índia... Porque o não nomeastes? Ordenei-lhe por carta que ficasse em Portugal para, com outros três, fazer parte do conselho de Estado que havia de governar o reino na minha ausência. Em minha insensatez, achava que só eu, Francisco Portugal e Luís Silva é que sabíamos de guerra..., quando nenhum de nós três havia visto em vida inimigo armado... Não sei que vos diga. E o romeiro continuava a contar. Com que fervor procedia aos preparativos da partida! Arrestar navios, embarcar vitualhas, dia e noite sem alçar mão do trabalho...» In Fernando Campos, A Ponte dos Suspiros, 1999, Difel SA, 2000, ISBN 978-972-290-806-1.

Cortesia de Difel/JDACT