segunda-feira, 21 de outubro de 2019

A Mentira Sagrada. Luís Miguel Rocha. «Reconhecera aquela voz. Era o mais bruto. Eu... Eu... Sou o vizinho da casa ao lado. Que haveria de dizer se não a verdade?»

Cortesia de wikipedia e jdact

Vaticano. 19 de Abril de 2005
«(…) Shimon deu mais um passo em direcção à janela do quarto de Marian que, coincidência, ficava de frente para o seu, separado por um muro que lhe dava pela anca. Assim que chegou à janela deparou-se com a cortina fechada. Raios. Assim não veria nada. Havia luz no interior, mas a cortina era opaca e não deixava ver nada. Virou a esquina das traseiras e avançou devagar. O sol escapulira-se para outras paragens. Já era noite cerrada. O coração acelerava-lhe no peito. Já não tinha idade para estas coisas. Ouviu um ruído abafado. Parecia alguém a arfar... E um estalo. O arfar podia ser seu, mas o estalo não. Deu meia volta à procura da origem do ruído e deu por si, novamente, na janela do quarto de Marian. As cortinas escondiam o interior, mas deixavam sair um pálido reflexo de luz nas extremidades. Não se viam sombras. Ouvia nitidamente o que se passava no interior do quarto. Alguém respirava muito depressa. Novo estalo. Não temos a noite toda, miúdo, ameaçou uma voz grossa, masculina.
Já disse. Não sei de que estão a falar. Enganaram-se na pessoa. Esta voz chorava. Deixem-me ir embora, por favor. Novo estalo com muita força, segundo a avaliação auditiva de Shimon. Arrastar de cadeiras e outros sons ininteligíveis. Não vou ser tão benevolente da próxima vez, ameaçou a mesma voz. Faz o que ele diz, miúdo. Isto não precisa de demorar muito tempo, aconselhou outra voz, mais cordial, ou assim parecia. Eu não sei nada. Vocês enganaram-se na pessoa, repetiu a voz lacrimosa. O teu nome é Ben Isaac Júnior?, interrogou o dono da voz mais amistosa. Filho de Ben Isaac? A voz chorosa não respondeu. Ouviu-se uma pancada. Talvez na cabeça. Não ouviste? Responde. Foi a vez da primeira voz entrar novamente em cena. Sou, respondeu Ben Isaac Júnior a medo. Liguem para o meu pai. Ele paga o que vocês pedirem. A aflição era notória. A voz amistosa começou a rir-se.
Isto não se trata de dinheiro. Ninguém está à procura de um resgate. Não?, perguntou Ben. Estava completamente desorientado. Não, confirmou a voz amistosa. Mas queremos algo, obviamente. E tu vais ajudar-nos a obtê-lo, Ben. Estamos entendidos? Shimon estava atónito, colado ao vidro da janela do quarto de Marian. Tinha de ir a casa ligar para a polícia. Alguém raptara Ben Isaac Júnior, quem quer que ele fosse. Tinha voz de catraio, filho de Ben Isaac pai que devia ter algo importante para mafiosos deste calibre. Por que haviam escolhido a casa de Marian, esse era outro mistério. Tudo a seu tempo. A polícia primeiro.
Dirigiu-se para a rua, ligeiro, a situação pedia presteza. Tão ligeiro quanto a idade e as forças que Javé lhe dera permitiam. Havia vidas humanas em risco. Quando a vizinhança soubesse disto ia ser um falatório. Shimon passou a janela da sala e... Quando tornou a acordar estava preso a uma cadeira naquele que fora o quarto de Marian e uma enorme dor latejante na nuca. Ao seu lado estava Ben Isaac Júnior que babava sangue e cuja cabeça pendia sobre o peito. Parecia adormecido. Dois homens miravam Shimon. Quem é você?, perguntou o da voz amistosa, notoriamente o líder do grupo. Era também o mais baixo. Eu?, proferiu Shimon a medo. A dor na parte de trás da cabeça não o deixava pensar. Sim, tu. Não ouviste?
Reconhecera aquela voz. Era o mais bruto. Eu... Eu... Sou o vizinho da casa ao lado. Que haveria de dizer se não a verdade? O da voz amistosa sorriu e aproximou-se dele, olhando-o nos olhos. Não. Sabes o que tu és?, perguntou sarcasticamente enquanto encostava um revólver à testa de Shimon que fechou os olhos e comprimiu os lábios em pânico, um arrepio frio a percorrer-lhe a espinha... O último. Um dano colateral.

A intimação chegou à residência há 100 dias, mas Hans Schmidt já contava com ela há muito. A congregação cumpria, escrupulosamente, todos os preceitos burocráticos sem falhas, sem atrasos, sem fraquezas». In Luís Miguel Rocha, A Mentira Sagrada, Porto Editora, 2011, ISBN 978-972-004-325-2.

Cortesia de PEditora/JDACT