segunda-feira, 21 de outubro de 2019

Marina. Carlos Ruiz Zafón. «O seu rasto nos levou a uma viela sem saída cortada pelo trecho descoberto dos carris do caminho-de-ferro de Sarriá, que subiam até Vallvidrera e Sant Cugat. Parámos ali»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) A dama de negro permaneceu em silêncio por quase cinco minutos ao pé do túmulo. Finalmente, inclinou-se, depositou a rosa vermelha na lápide e foi embora lentamente, assim como tinha vindo. Como uma aparição. Marina olhou para mim de um jeito nervoso e aproximou-se para cochichar alguma coisa no meu ouvido. Senti os seus lábios roçando a minha orelha e uma lagarta com patinhas de fogo começou a dançar um samba na minha nuca.
Encontrei-a por acaso há três meses, quando vim com Germán para depositar flores no túmulo da sua tia Reme... Ela vem sempre no último domingo do mês às dez da manhã e deixa uma rosa vermelha sobre essa lápide, explicou Marina. Usa sempre a mesma capa com capuz e luvas. Vem sempre sozinha. Nunca mostra o rosto. Nunca fala com ninguém. Quem está enterrado aí? O estranho símbolo entalhado no mármore despertava a minha curiosidade. Não sei. No registo do cemitério não aparece nenhum nome... E quem é essa mulher? Marina ia responder quando viu a silhueta da dama de negro desaparecendo pelo portão do cemitério. Puxou-me com a mão e levantou-se apressada. Rápido. Vamos perdê-la. Então vamos segui-la?, perguntei. Você não queria acção?, disse ela, a meio caminho entre a pena e a irritação, como se eu fosse um bobo.
Quando chegámos à rua Dr. Roux, a mulher de negro estava caminhando em direcção à Bonanova. Tinha voltado a chover, embora o Sol teimasse em não se esconder. Seguimos a mulher através daquela cortina de lágrimas de ouro. Cruzámos o Paseo de la Bonanova e subimos até ao sopé das montanhas, povoado de palacetes e mansões que já tinham conhecido tempos melhores. A dama penetrou naquela rede de ruas desertas. Um manto de folhas secas cobria o chão, brilhantes como as escamas abandonadas de uma grande serpente. Quando chegou a um cruzamento, ela se deteve, uma estátua viva. Ela nos viu..., sussurrei, refugiando-me com Marina atrás de um grosso tronco de árvore sulcado de inscrições. Por um instante, temi que ela se fosse virar e ver-nos. Mas não. Em pouco tempo, dobrou à esquerda e desapareceu. Marina e eu nos entreolhamos e recomeçámos a nossa perseguição.
O seu rasto nos levou a uma viela sem saída cortada pelo trecho descoberto dos carris do caminho-de-ferro de Sarriá, que subiam até Vallvidrera e Sant Cugat. Parámos ali. Não havia sinal da dama de negro, embora eu tivesse visto, e Marina também, quando ela dobrou naquela altura. Por cima das árvores e dos telhados das casas, viam-se as torres do internato à distância. Deve ter entrado em casa, comentei. Deve morar aqui por perto. Não. Essas casas estão desabitadas. Ninguém vive aqui. Marina indicou as fachadas ocultas atrás de cercas e muros. Um par de velhos armazéns abandonados e um casarão devorado pelas chamas, décadas antes, era tudo o que restava de pé. A dama de negro tinha sumido debaixo dos nossos narizes.
Seguimos pela viela. Uma poça reflectia uma lâmina de céu aos nossos pés. Gotas de chuva turvavam a nossa imagem. No final da rua, um portão de madeira balançava movido pelo vento. Marina olhou para mim em silêncio. Chegámos mais perto e cuidadosamente me debrucei para dar uma espreitadela. O portão, preso num muro de ladrilhos vermelhos, dava para um pátio. O que em outra época era um jardim agora estava completamente tomado pelas ervas daninhas. Por trás daquela massa verde, adivinhava-se a fachada de um estranho edifício coberto de hera. Demorei alguns segundos para entender que se tratava de uma estufa de vidro armada sobre um esqueleto de aço. As plantas rangiam como um enxame à espreita». In Carlos Ruiz Zafón, Marina, 1999, Planeta Editora, 2010, ISBN 978-989-657-119.1

Cortesia de PlanetaE/JDACT