quarta-feira, 26 de julho de 2023

A Vida Sexual de Catherine M. Catherine Millet- «Colocavam-se novamente as mesmas perguntas: seis era um número razoável ou se poderia ter mais? Que diferença de idade poderia haver entre eles? Acrescentava-se a divisão entre meninas e meninos»

Cortesia de wikipedia

 O Número

«Quando criança, eu era muito preocupada com os números. A lembrança que guardamos dos pensamentos ou das acções solitárias é muito clara: são as primeiras chances dadas à consciência de se mostrar a si mesma. Os acontecimentos compartilhados, por outro lado, permanecem presos à incerteza dos sentimentos que os outros nos inspiram (admiração, medo, amor ou aversão) e que, quando crianças, somos ainda menos aptos a enfrentar e mesmo compreender do que na idade adulta.

Lembro-me, então, particularmente dos pensamentos que, toda noite antes de adormecer, me aliciavam para uma escrupulosa ocupação de contagem. Pouco tempo depois do nascimento de meu irmão (eu tinha então três anos e meio), minha família mudou-se para um novo apartamento. Durante os primeiros anos em que moramos lá, minha cama ficava no cómodo maior, diante da porta. Olhando fixamente para a luz que vinha da cozinha, do outro lado do corredor, onde minha mãe e minha avó ainda trabalhavam, eu não conseguia conciliar o sono enquanto não tivesse considerado, em sequência, várias questões. Uma delas dizia respeito ao facto de alguém ter muitos maridos. Não pensava sobre a possibilidade de que tal situação existisse, o que me parecia óbvio, mas, evidentemente, sobre suas condições.

Uma mulher poderia ter muitos maridos ao mesmo tempo ou apenas um depois do outro? Neste caso, quanto tempo deveria ficar casada com um antes de poder trocar por outro? Quantos maridos ela razoavelmente poderia ter: alguns, cinco ou seis, ou um número muito maior, ilimitado? Como eu agiria quando crescesse? Com o passar dos anos, a contagem de maridos foi substituída pela contagem de filhos. Acho que me sentia menos vulnerável à incerteza quando fixava meus devaneios nos traços de um homem identificado (actores de cinema, um primo alemão etc.), com quem me encontrava sob o signo da sedução. Imaginava assim, de maneira mais concreta, minha vida de mulher casada e, portanto, a presença de crianças.

Colocavam-se novamente as mesmas perguntas: seis era um número razoável ou se poderia ter mais? Que diferença de idade poderia haver entre eles? Acrescentava-se a divisão entre meninas e meninos.

Não posso rememorar esses pensamentos sem ligá-los a outras obsessões que também me ocupavam. Na relação que eu tinha estabelecido com Deus, todas as noites ocupava-me com Sua alimentação e com a enumeração dos pratos e dos copos d'água que eu, em pensamento, Lhe servia, preocupada com a quantidade certa, com o ritmo da transmissão etc. Esta obsessão se alternava com as interrogações sobre o preenchimento de minha vida futura com maridos e filhos.

Eu era muito religiosa, e é possível que a confusão na qual eu percebia a identidade de Deus e de Seu filho tenha favorecido minha inclinação pela actividade de contagem. Deus era a voz sonante que, sem mostrar o rosto, lembrava a ordem aos homens.

Mas tinham-me ensinado que Ele era também o boneco de gesso rosa que eu colocava todos os anos no presépio, o infeliz pregado na cruz diante do qual rezávamos, apesar de um e outro serem também Seu filho, da mesma maneira que uma espécie de fantasma se chamava Espírito Santo. Enfim, eu sabia muito bem que José era o marido da Virgem e que Jesus, sendo Deus e filho de Deus, O chamava de Pai. A Virgem era não apenas a mãe de Deus, mas dizia-se também Sua filha.

Um dia, quando cheguei à idade de frequentar o catecismo, quis ter uma conversa com um padre. Meu problema era o seguinte: eu queria tornar-me religiosa, casar com Deus e ser missionária numa Africa onde pululavam povos desprovidos, mas desejava também ter maridos e filhos. O padre era um homem lacônico, e interrompeu a conversa, julgando minha preocupação prematura.

Até que nascesse a ideia deste livro, nunca havia pensado muito sobre minha sexualidade. Tinha, no entanto, consciência das múltiplas relações precoces que vivi, o que é pouco costumeiro, sobretudo para meninas, pelo menos no meio em que cresci. Deixei de ser virgem aos dezoito anos, que não é especialmente cedo, mas participei de uma suruba pela primeira vez nas semanas que se seguiram a minha defloração». In Catherine Millet, A Vida Sexual de Catherine M, Editora Ediouro, 2001, ISBN 978-843-397-791-5.

Cortesia de EEdiouro/Anagrama/JDACT

JDAXT, Catherine Millet, Literatura,