terça-feira, 12 de dezembro de 2023

Almoço de Domingo. José Luís Peixoto. «Sabia de episódios em todos os recantos da vila, presenciara uma parte deles, salpicado por muita realidade, e vivera uma porção ainda mais extensa desse rol. E sorria com força nova…»

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26 de Março de 2021

«Acordou sem idade. Lembrou-se do corpo, mas não mexeu um dedo. Sentiu a roupa da cama, indistinta daquela hora da madrugada, mas não abriu os olhos. Coberto pelo agasalho, preferia a escuridão à penumbra ou, pior ainda, aos números modernos e implicantes do despertador electrónico. As pálpebras eram-lhe leves, da mesma maneira que era leve o mundo naquele instante, o silêncio lá fora sobre a vila, o ar limpo que inspirava e que o desimpedia por dentro. Não mexeu um dedo ou qualquer músculo, tinha certezas. Sabia que envelhecer é acumular dores: começam por doer certos gestos, certos jeitos, virar-se de repente, agachar-se para atar o sapato; depois, doem as acções mais comuns, sentar-se, levantar-se, caminhar; até que, por fim, dói tudo, dói estar, dói ser.

Essas eram as dores que não sentia ali. Estava como na mocidade ou, pelo menos, estava como quando desconhecia determinadas queixas. Deitado, louvava as serventias da ignorância e, sem querer entregar-se à excessiva ingenuidade, quase acreditou que podia ter rejuvenescido de repente. Era uma hipótese, quem sabe, se calhar. Já tinha sido testemunha de fenómenos muito mais imprevistos. Se lhe fosse oferecido esse negócio, estava pronto a aceitá-lo de imediato, embora jamais se mostrasse demasiado ansioso, há muito que conhecia as regras das transacções comerciais. Em todo o caso, à cautela, permanecia imóvel, mantinha a posição.

Lembrou-se dos óculos do Marcello Caetano. E baralhou-se, passou um segundo ou o que pareceu ser um segundo. Lembrou-se do cheiro avinagrado da massa das farinheiras e quis continuar nessa lembrança, prosseguiu, a massa branca que repousava em dois alguidares, grãos de gordura a brilharem, a mãe e duas mulheres a instalarem-se em bancos, de roda do primeiro alguidar e, com unhas cortadas à tesoura, a encherem as tripas, e a massa das farinheiras nas costas das mãos, quase a chegar aos pulsos, enfiavam-na com os dedos num pequeno funil de alumínio e, através desse instrumento, nas tripas, que não enchiam completamente antes de amarrar com o atilho, e a mãe a levantar o rosto, a dar por ele, seu filho, a chamá-lo, a chamá-lo de novo no interior dessa lembrança. Vinha de longe a voz da mãe e, no entanto, custava-lhe diferenciá-la de si próprio. Onde existia a voz da mãe naquele instante? E repetiu a lembrança da mãe a chamá-lo, o cheiro avinagrado da massa das farinheiras.

Era um homem deitado. Como se, ao perder a idade, tivesse perdido uma parte do nome. Desfrutava de uma simplicidade que esquecera durante longas temporadas. Como se tivesse sido aliviado de uma carga invisível, talvez o olhar que as multidões lhe dirigiam quando chegava, talvez o peso do respeito, senhor comendador, senhor comendador, era um homem deitado. Ou seja, mantinha o nome, sempre recusou ser anónimo, levava o nome entranhado, mas tinha perdido o peso que o tempo lhe acrescentara. Mantinha a história mas, incrivelmente, como um mistério daquela hora da madrugada, o peso que lhe sobrecarregava os ossos tinha sido levantado.

Aproveitou essa liberdade, sorriu por dentro. Essencial, reduzido ao ser ou, com mais rigor, ampliado nele, seguiu a reverberação imaterial que ocupava e estendeu a sua presença à casa, silêncio formal, cerimonioso, pontilhado por estalidos aleatórios na distância, madeiras a queixarem-se. Deitado na cama, na vasta escuridão dos olhos fechados, avançou por corredores, entrou em divisões que, apesar da passagem dos anos, continuavam a parecer-lhe novas. Recordou o momento em que foram projectadas e edificadas; com a mesma facilidade, poderia ter recordado o tempo em que apenas as imaginava.

Nunca quis acostumar-se à posse, deixar de apreciar, perder o gosto, era aquela uma casa boa. E atravessou as paredes da casa, muros, portas, portões, ou atravessou uma ideia com a mesma grossura, e lançou o sentido nas ruas da vila. Conhecia todas as ruas, tanto as mais antigas, distorcidas por séculos, calcorreadas por gente e gente, sombras sacrificadas, como as mais recentes, ainda cheirosas de cimento. Se fosse preciso, não lhe custaria achar caminho em Campo Maior na noite mais preta, sem lua, sem iluminação pública, de olhos fechados.

Em tempos, pousara a palma da mão bem aberta na cal, sentira-lhe as múltiplas camadas. Sabia de episódios em todos os recantos da vila, presenciara uma parte deles, salpicado por muita realidade, e vivera uma porção ainda mais extensa desse rol. E sorria com força nova ao reparar no fresco de algumas ruas, aragem que bulia entre as fachadas, erguidas de um lado e de outro, portas abertas ou apenas encostadas, o trinco solto, roupas estendidas de gente que conhecia bem, vozes a tratarem do jantar, braseiras espalhadas nos fins de tarde de Março, a avivar as brasas para o serão. A que ano pertenceriam esses marços?, esta era a pergunta que não colocava, preferia analisar o aroma das folhas de laranjeira, vindo de algum quintal, de alguma horta, já talvez a caminho do campo e, dessa maneira, escutava o som das botas a pisarem a terra, ervas de Março ou, mais provavelmente, ervas sem mês e sem ano». In José Luís Peixoto, Almoço de Domingo, Quetzal Editores, 2021, ISBN 978-989-722-460-7.

 Cortesia de QuetzalE/JDACT

JDACT, José Luís Peixoto, Literatura, Narrativa, Campo Maior, Rui Nabeiro, O Saber,