domingo, 11 de fevereiro de 2024

Já Ninguém Morre de Amor. Domingos Amaral. «… a indicação era a de que o seu pai biológico não era Roberto Carvalho Lobo, mas sim um tal Kalanga, certamente um africano e personagem de quem nunca ouvira falar»

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Roberto Antunes Palma Lobo, 1881-1916

«Isso é muito interessante. Ao longo do século XIX, a costa de Moçambique era regularmente atacada por piratas. Tinham o seu covil na ilha de Madagáscar, e actuavam em todo o oceano Índico, desde a Etiópia até à África do Sul. Eram de muitas nacionalidades. Havia ingleses, franceses, holandeses, espanhóis, portugueses, mas também muitos negros, indianos e até chineses e malaios. A maior parte eram bandidos fugidos do seu país natal, e viviam em comunidades sem leis nem regras. Atacavam as costas de África e os barcos de mercadorias, pilhando e saqueando, para terror das populações e dos viajantes. A marinha inglesa, a alemã e até um pouco a portuguesa tentavam dar-lhes luta, mas aquelas paragens não eram prioritárias para a defesa de nenhum império, e só os abalos no comércio marítimo é que provocavam alguma preocupação nos governos.

É perfeitamente possível, se ele fosse um mercador, que tivesse entrado em confrontos com os piratas... Subitamente, levantou-se e caminhou na direcção de uma estante. Há qualquer coisa escrita sobre os piratas... Vi-o examinar as lombadas de alguns livros, mas depois parou e olhou para o relógio. Vou ter de procurar à tarde, agora não tenho muito tempo, tenho um almoço marcado...

Prometeu que me falaria, mas saí da universidade sem entusiasmo. Não avançara nas minhas buscas. Regressei ao hotel para almoçar e, depois de mais um banho refrescante na piscina, apanhei um táxi para a Conservatória Central de Maputo, onde iria procurar as certidões de nascimento do bisavô de Salvador, bem como as certidões de óbito da sua trisavó, Efigénia Antunes Palma, e do seu trisavô, Roberto Carvalho Lobo, todas datadas de 1881.

A Conservatória ficava num edifício cinzento e sombrio, com uma arquitectura de linhas planas, em estilo soviético, influenciado pela ligação do regime de Samora Machel ao comunismo depois da independência de 1974. Nas paredes exteriores ainda se podiam ver alguns buracos de balas, vestígios da guerra civil que assolara o país nas décadas de 80 e 90, e que colocara frente a frente a Frelimo e a Renamo.

Havia pouca gente nos corredores, e descobri a sala dos registos através dos sinais nas paredes. Entrei e dirigi-me ao balcão, onde algumas pessoas esperavam para ser atendidas. Quando chegou a minha vez, uma funcionária negríssima, muito gorda e muito simpática, informou-me que se chamava Fátima.

O que você deseja, meu filho, perguntou. Anotou num pequeno papel branco o ano de 1881 e sumiu-se por uma porta, não sem antes me dizer: Espere um pouco, meu filho. Quinze minutos depois, dona Fátima voltou carregada com dois velhos livros de capa castanha, que cheiravam a mofo e estavam cobertos de pó. Meu filho, há muitos anos que ninguém lhes tocava. Por sorte não se perderam com a guerra. Ainda bem...

Abriu o primeiro livro à minha frente. Agora, meu filho, você procura. Depois, se precisar, eu tiro umas fotocópias... Dona Fátima afastou-se e foi atender outro homem, a quem também chamou meu filho. Comecei a examinar o livro das certidões de óbito de 1881. A primeira a aparecer foi naturalmente a do trisavô de Salvador. Roberto Carvalho Lobo falecera a 28 de Janeiro de 1881, e a causa do óbito assinalada era ferimento mortal com arma de fogo. Nada era dito sobre as restantes circunstâncias da morte.

Marquei a página e prossegui folheando o livro. No dia 31 de Outubro, nove meses e três dias após o óbito do marido, Efigénia morria também em casa, devido a complicações depois do parto de um nascituro do sexo masculino. Nada de novo, portanto.

Passei ao segundo livro, o dos nascimentos de 1881, e confirmei que, no mesmo dia em que a mãe morrera, 31 de Outubro de 1881, nascera o bisavô Roberto Antunes Palma Lobo, o primeiro onde os dois nomes, Palma e Lobo, se haviam juntado. Só que, se quanto ao nome da mãe não havia novidade, era filho de Efigénia Antunes Palma, quanto ao nome do pai havia uma surpresa. O que lá estava escrito era Kalanga. Assim, sem mais nem menos. Embora o rapaz tivesse sido registado com o novo nome de família, Palma Lobo, a indicação era a de que o seu pai biológico não era Roberto Carvalho Lobo, mas sim um tal Kalanga, certamente um africano e personagem de quem nunca ouvira falar». In Domingos Amaral, Já Ninguém Morre de Amor, Oficina do Livro, 2008, ISBN 978-972-461-802-9.

Cortesia de OficinadoLivro/JDACT

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