sexta-feira, 12 de julho de 2024

Fernando Campos. Psiché. «Ela estendia‑lhe as mãos de costas para cima. Ah! É um rapaz! Vou ter um bisnetinho! Mas a vinte e seis de Dezembro nascia uma menina que ele já não pôde conhecer»

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A memória do esquecimento

«O telefone tocara no meio da barafunda do início do ano lectivo e das preocupações. Não se deve expor a uma tal viagem agora, foi a proibição do Mário Carneiro. Nem pensar! Ela concordava, virava‑se para mim: tu... Também não podes ir. Não há ninguém para te substituir no colégio. Foi assim que não estive presente no funeral de Silva Lisboa. Escrevo Silva Lisboa e não meu avô porque, como narrador que conta os factos muitos anos volvidos, desejo aproveitar esse distanciamento para ganhar a perspectiva e imparcialidade possíveis e desfazer a natural emoção. Silva Lisboa e Albertina, Raquel e Alberto Tavares, Fernanda e Alberto Campos..., e Mário..., e Ana de Jesus..., e Maria José..., e João..., e Josué..., e a desconhecida... Pessoas, personagens de romance. Lembro a última imagem que dele me ficou. Chegara o fim de Agosto e partíamos, eu e Maria Olga, com as duas filhas, acabadas as férias grandes, para o nosso castelo roqueiro, por causa da abertura do colégio. Fomos ao quarto dele despedirmo‑nos. Olhou‑nos com um sorriso a disfarçar o ar triste, sentado na borda da cama, seu pijama de flanela azul às riscas. Mostre‑me as suas mãos!, recordo‑lhe a voz dirigindo‑se à Maria Olga. Pegou‑lhas vivamente quando ela as estendeu de costas para cima. Gostava de falar com ela, que tinha muita paciência para o escutar, lhe fazia atenciosa companhia quando lá passávamos uns dias. Deixava‑a arrancar‑lhe pormenores da sua vida que a mais ninguém confidenciara. Talvez porque mais ninguém lhe fazia ou ousava fazer perguntas ou se sentia à vontade para lhas fazer.

Pairava no ar um certo receio de se virem a descobrir realidades penosas que fossem contra as conveniências. Ela, sim. Sentia‑se desinibida à beira dele, a conversar com ele. O visconde de Cairu? surpreendi‑a uma vez a perguntar‑lhe. É verdade, respondia ele. E o pai?... Como é que o vovô soube?..., tornava ela. E ele lá contava, com a voz um pouco sumida, à puridade, a estranha história... Flanela azul às riscas... sentado na borda da cama..., o faiscar do anel no dedo mindinho... Basta um pormenor para lhe avivar a imagem! Ela estendia‑lhe as mãos de costas para cima. Ah! É um rapaz! Vou ter um bisnetinho! Mas a vinte e seis de Dezembro nascia uma menina que ele já não pôde conhecer». In Fernando Campos, Psiché, Difel, Lisboa, 1987, Dl nº 83973.

Cortesia de Difel/JDACT

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