A Esmeralda Partida. Fernando Campos. «… contava a minha aia e eu trazia os ouvidos cheios de histórias maravilhosas: que é dele o cavaleiro louro de olhos azuis?
O Rei de Marfim
«(…) Para onde mais podia ela ir, senão
ali ficar na cela em que recolheu o último bafo da mãe?..., tudo aí começou.
Tânger foi o descalabro de todos nós..., do cativeiro do infante, da morte
prematura do rei na menoridade do filho, do rebentar dessa semente funesta da
malquerença contra o regente meu pai..., porque não se cansava a tia Filipa de
falar nisso?, ainda lhe doía a morte do pai, agora avivada pela da mãe?, raiva,
ódio, desejo de vingança?..., que outra coisa havias tu e tua irmã de fazer
senão afagar-lhe o ombro, abraçá-la, tomar-lhe as mãos, a consolá-la à tia
Filipa, irmã de vossa mãe?..., nunca te haveria de esquecer o olhar dela
molhado a erguer-se para ti, para Joana: devereis saber, meus sobrinhos..., e
as palavras se lhe mergulhavam atrás a revolver no poço do tempo... bom
monteiro e caçador, não há que ver, como todos os varões dessa família ..., eu
sei, eu sei, minha senhora tia, intervinhas tu. Meu bisavô João até escreveu
aquele livro ..., sim, e nosso avô Duarte, lembrava Joana, compôs também um
outro ..., assim é. E este nosso avô Pedro ...
É isso, sim, meus sobrinhos, mas
particularmente do que vosso avô Pedro mais gostava era de ocupar suas
horas..., com que minúcia repartia cada tarefa, cada obrigação pelas horas do
dia!..., deixa-me ver se adivinho, deixa ..., diz, meu sobrinho. Do que ele
mais gostava era de ocupar suas horas metido na livraria ..., a estudar ...,
completava tua irmã. E a verter do latim o livro dos ofícios de Marco Túlio
Cicerão..., costumava dizer que cada livro era uma janela do universo, mas
acrescentava pensativo: Mais se aprende dos costumes a índole dos homens do que
pela leitura de grossos volumes, homem sábio, meu pai! Arrumado nas ideias e na
acção, o cuidado que punha em mandar abrir valas para enxugar os pântanos do
Mondego..., bom administrador de sua casa como dos negócios da república,
conhecedor como poucos da arte da guerra, perito do regimento da corte..., que
saudades as minhas! Quando ele aparecia à porta da câmara cansado do estudo,
meus meninos, desembaraçava-me eu do colo da ama e corria a estender-lhe os
braços para o alto, ele avançava no seu andar manso, dobrava-se, içava-me a
beijar-me..., a mim, enquanto sentia aquela barba ruiva arranhar-me a cara,
semelhava-me estar a ver do cimo da torre de um castelo a sala e as pessoas lá
em baixo muito pequenas..., depois sentava-se..., quantas vezes o fazia, com os
filhos em roda e a minha mãe ao lado, a recordar as suas viagens por essa
Europa fora..., de seu jeito, bem diferente, mas contava a minha aia e eu
trazia os ouvidos cheios de histórias maravilhosas: que é dele o cavaleiro
louro de olhos azuis?, lá vai cavalgando em seu corcel de prata e de arreios de
ouro, seguem-no atrás os doze companheiros, Cristo mai-los discípulos, como
fantasmas caminham sobre as montadas tarrenego mafarrico, não parecem desta
vida, bestas do apocalis a correr campos de turcos, ladeiam já
as margens do termodonte no país das amazonas, atravessam desertos em cima de
dromedários e chegam à Noruega onde os dias não luzem mais do que quatro horas,
passam Babilónia, a província dos centauros, a terra dos alarves em que os
filhos são sepultura dos pais, nas serranias da arménia vêem a arca de noé, por
damasco descem à Terra Santa, ao Egipto, onde assistem ao suplício de um mouro
que por ter dado uma bofetada num peregrino é empalado numa vara afiada que lhe
saía pela boca..., visitam a região dos gigantes, dos homens com cabeça de cão,
dos pigmeus que têm guerra com as aves... em Meca admiram, suspenso no ar por
seis pedras imãs, o moimento de mafoma... e entram no paraíso terreal, que é
banhado por quatro rios: do Tigre, que corre por território dos assírios, saem
ramos de ciprestes e de oliveiras; das ondas do Eufrates erguem-se palmeirais
agitados pelo vento; do Géon, que circunda o chão da Etiópia, surgem homens cor
de bronze; do Físon, que rodeia a região de Hevilath, onde nasce o ouro e se
encontra o Bdélio e a Cornalina, esvoaçam papagaios coloridos em seus ninhos
pelas águas... » In Fernando Campos, A Esmeralda Partida, 1995,
Difel, Lisboa, 2008, ISBN 978-972-290-330-1.
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