NOTA:: Mário Rainho faleceu no dia 2 de Janeiro de 2025, com 97 anos
«O filósofo veio à janela, olhou, de dentro para fora, e de cima para baixo, e, ao ver o frade branco, insultou-o, com muitos ralhos, com imprecações intermináveis, com maldições eternas .E, em altos berros e espadaladas várias, aparece ali naquela cena, saído de trás do reposteiro do tempo, esparvoado, o franciscano inglês Roger Bacon, a tomar partido pelo dono da casa, a quem tutorava naquele trabalho de ópticas, por sua conta desde o século XII, que não era mais que negócio de óculos e lentes de contacto...
E palavra puxa palavra, doutrina puxa doutrina, frade não deve a frade,
vamos à bulha e todos ao monte, e o dominicano com o seu manto branco, muito
mais sujo da refrega que o hábito castanho do franciscano. Spinoza, o judeu
filósofo, agradecido, ia virar as costas para continuar a lapidar, quando, de
repente e ofegante, chega o Richard Zimler do novo mundo, para fazer a acta do
ali acontecido, trazendo como testemunha cientificadora o Alexandre
Quintanilha, talvez para escrever agora sobre o último cabalista de Castelo de
Vide, ensinando ao filósofo qual o melhor trajecto para a sinagoga portuguesa
de Amesterdão.
João III, o Piedoso, apiedou-se de si e, sentado no banco da Fonte, que
era o suporte de cântaros e bilhas de água ou o poiso das apeias das azémolas,
com a cara escondida entre as mãos, para não ver o que deixou para o futuro,
soluçava com gritos de permeio, que se ouviam a séculos de distância.
O Garcia, impressionado com aquele espectáculo dramático, deitou-me o olhar
com tons complacentes, a sustentar desculpas por aquela ocorrência, rogando-me,
por instantes, compreensão, e foi-me afastando daquele território, daquela
cena, que mais parecia teatro vicentino do que momento azíago de declamação
ocasional de papéis, previamente estudados, nas intertelas do devir dos
acontecimentos.
Falava-me ele de teatro, falava eu de tragédia, de fingimentos na arte de
representar na vida e das máscaras gregas de Epidauro, quando, esquina volvida, aparece o Mário
Rainho, director de um grupo de teatro, um homem com quem havia de
privar alguns anos, com um notável espírito de observação, supremamente
evidenciado pelo anexim de observa, com que os homens da terra o
marcaram.
Era uma pessoa recheada de singularidades, de alto e belo espírito, que
também se embevecia de belezas. De entretém, de oportunidade, ao ver-me ser
solidário nesses afazeres da alma, com delicadeza nos conduziu para uma outra
rua e, postando-se em frente a uma casa, de altos e baixos, disse-me que ali
tinha vivido o grande dramaturgo João da Câmara, autor da comédia OS
VELHOS, cuja génese tinha, como terreiro, a freguesia de Santo António
das Areias e cuja acção se essenciava na reacção da população daquele povo à
chegado do comboio». In Aníbal Belo, Carta de Marvão, Edições
Universidade Fernando Pessoa, 2001, ISBN-972-8184-66-2.
Cortesia da U.F. Pessoa/JDACT
Castelo de Vide, Mário Rainho, Aníbal Belo, JDACT,