quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

Palavras Cínicas. Albino Forjaz Sampaio. «Cada homem dissimula em si um trágico carnaval. Murger disse algures que a Vida era uma máscara de forçados. E se pudesses fazer cair a máscara que cada um afivela recuarias de terror»

Cortesia de wikipedia e jdact

Carta II
«(…) A Vida é feita de lodo e os homens do pó do crime. Tudo é lama e toda a lama é igual. A que salpica uma toilette de seda e a que traça constelações nos trapos das mendigas. As almas são de lama, as rosas são de lama, os lírios são de lama, como as estrelas, como as hóstias, como os mortos, como os vivos. Há a lama vestida de pérolas e a vestida de escrófulas, a lama toucada de sedas e cetins e a vestida de crostas e farrapos. Mas é tudo a mesma impureza, tudo a mesma podridão. Tão impuras são as vestes de Messalina como a escova de dentes de Gautier, as ligas de Agripina como a cama de Rigolbeche, e tudo isto como o manto da Imaculada Conceição. A diferença que vai daquele bandalho, que passa de chapéu alto, àquele malandro, que pisca os olhos e pede esmola, não é nenhuma. Pura convenção. Se tu fosses buscar uma rameira de hospital e a toucasses de sedas ela arranjaria coorte. Viriam a seus pés os famintos, as rascoas, os interesseiros, os honrados, os banqueiros, o mundo todo. Que me importa que a imagem desta libra seja a de uma rainha ou a de uma prostituta se com ela eu posso compra-las ambas? Tudo é dor. A dor é igual. Senti-la maior ou menor é diferença dos nervos que a sentem, como a grandeza dos que a vêem. A dor é egoísta como o mundo. A dor da mãe que perdeu o filho é egoísta. São os lamentos pela felicidade que perdeu. Como a da águia a quem roubaram os ovos, como a do avaro a quem roubaram um dobrão, como a da Virgem a quem roubaram Jesus. Tu já leste Os Homens do Mar, de Vítor Hugo? Recordas-te da pieuvre? A dor é a pieuvre. Enlaça os corpos, as almas, suga-as, bebe-as em vida. A alguns deixa apenas o esqueleto.
A águia que rói os fígados a Prometeu não é outra senão a Dor. Bendita seja a Dor que tiraniza e leva ao crime. Tudo é mentira, tudo ilusão. Quem sabe lá quanta podridão levedou para dar uma rosa, para abrir um malmequer, e para florir uma chaga? Que as chagas o que são senão rubras e esquisitas flores? Abre um crânio e vê se distingues a alma de Dante da alma de Caim, a de Inocêncio III da do galego da esquina. Quem distinguirá lá em baixo no ventre da terra a carne de Impéria da carne de Chénier, a ossada de Gilbert da ossada de Ravachol? O rosto que ri não é o mesmo que chora? A boca que canta e ri não é a mesma que ameaça e insulta, que suspira, que geme e que reza? Os olhos que vêem Deus e o Diabo? As almas não servem a ambos, atraiçoando ambos? Vê quanto pus encerra esta palavra: Amor! Tu crês no Amor? Na Amizade? No teu semelhante? É preferível ver um cano de esgoto em toda a sua porcaria a uma alma em toda a sua intimidade. Há almas cuja treva é maior que a noite, consciências cuja lama é maior que a de todos os pântanos da terra.
Cada homem dissimula em si um trágico carnaval. Murger disse algures que a Vida era uma máscara de forçados. E se pudesses fazer cair a máscara que cada um afivela recuarias de terror. À face da terra o homem não tem feito senão mal. Foi ele quem inventou os tronos e os altares, que fez a Verdade e a Mentira. Que inventou o canalha que governa e o que sofre a sua até morrer, que inventou a guilhotina e a glória, o deboche e o dinheiro. Sobre cada ventre pesa uma maldição, sobre cada berço pesa uma agonia. Há mães que à hora da morte amaldiçoam a sua obra. Benditos os que amaldiçoam. O ventre das mães é o embrião do crime. Barregãs que o desejo ensandeceu deviam ser rompidas pelo ventre como o Senhor prometeu às emprenhadas dos povos pecadores. Que maldito seja o ventre de todas as mães. Filhos fecundados em plena bebedeira, que bateis nas mães, que cuspis em Deus, que quebrais os santos e rasgais as páginas balofas dos missais, vede se na morte não sois iguais aos justos, se todos não são iguais na morte. Benditos sejam os matricidas, benditos sejam os homicidas, os perversos, os malditos. Bendito seja Orestes que violou a mãe, Amon que desflorou a irmã, Myrra que teve incesto com o pai. Benditas sejam as mães que matam os filhos, o irmão que mata o irmão, o canalha que mata o canalha.
Benditos os que matam porque eles semeiam a felicidade. Há caveiras que riem bêbadas de riso, outras que cerram os dentes de uma grande raiva. Nunca reparaste? Enchi-te de desolação e abandono. Que eu exagero? Mas isto ainda é pouco. A torpeza da vida não caberia em mil volumes como este. Que eu exagero?! Que eu exagero?! Patife, tu bem sabes que eu digo a verdade. Já viste quanto cómico há na vida trágica e quanto trágico há na vida cómica? Há risos que são mais tristes que a tocha de um gato pingado, lágrimas que por mais que se queira fazem sempre soltar gargalhadas. As lágrimas choradas e que a terra tem bebido há 6.000 anos que o mundo é mundo davam um novo dilúvio capaz de afogar o mundo todo. A luz do sol tem visto mais podridões que o mármore de uma casa de autópsias. O que é a vida? Não sei. Eu tenho visto nela muita torpeza e muita lama. Sê mau, ouves? Sê mau. Tens que ser mau que a terra vive do mal. Às vezes sinto-me fatigado de só o ter sido mediocremente. Ah, eu nunca poderei vir a ser um Nero! E Nero que incendiou Roma não é bem maior do que São Francisco de Assis? Incendiar uma cidade é bom, mas incendiar o mundo? Incendiar o mundo, ó gentes? Que grande obra para um caricaturista! A lama a não querer morrer, a fugir do braseiro...» In Albino Forjaz Sampaio, Palavras Cínicas, 1905, prefácio de Fred Teixeira, Wikipédia, 2011, Editora Guerra e Paz, ISBN 978-989-702-000-1.

Cortesia de EGPaz/Wikipedia/JDACT