quinta-feira, 27 de julho de 2023

A Dupla Chama. Amor e Erotismo Octavio Paz. «Passaram os anos, Continuei escrevendo poemas que, com frequência, eram ele amor. Neles apareciam, como frases musicais recorrentes, também como obsessões, imagens que eram a cristalização de minhas reflexões…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Quando se começa a escrever um livro? Quanto tempo demoramos para escrevê-Io? Perguntas aparentemente fáceis, mas na verdade árduas. Se me atenho a factos exteriores, comecei estas páginas nos primeiros dias de Março deste ano e terminei em fins de Abril: dois meses. A verdade é que comecei na minha adolescência. Meus primeiros poemas foram de amor e desde então esse tema aparece constantemente na minha poesia. Fui também um ávido leitor de tragédias e comédias, romances e poemas de amor, dos contos das Mil e Uma noites a Romeu e Julteta e A Cartuxa de Parma. Essas leituras alimentaram minhas reflexões e iluminaram minhas experiências. Em 1960 escrevi meia centena de páginas sobre Sade, nas quais procurei traçar as fronteiras entre a sexualidade animal, o erotismo humano e o domínio mais restrito do amor. Não fiquei inteiramente satisfeito, mas aquele ensaio serviu para que eu percebesse a imensidão do tema. Em 1995 vivia na Índia; as noites eram azuis e eléctricas como as do poema que canta os amores de Krishna e Radha. Enamorei-me. Então decidi escrever um pequeno livro sobre o amor que, partindo da conexão íntima entre os três campos, o sexo, o erotismo e o amor, fosse uma exploração do sentimento amoroso. Fiz algumas anotações. Tive de parar: obrigações circunstanciais me forçaram a adiar o projecto, Deixei a Índia e uns dez anos depois, nos Estados Unidos, escrevi um ensnio sobre Fourier no qual voltei a algumas daquelas ideias esboçadas em minhas anotações. Outras preocupações e trabalhos, novamente, se interpuseram. Meu projecto ficava cada vez mais longe. Eu não podia esquecê-lo, mas tampouco tinha ânimo para executá-Io.

Passaram os anos, Continuei escrevendo poemas que, com frequência, eram ele amor. Neles apareciam, como frases musicais recorrentes, também como obsessões, imagens que eram a cristalização de minhas reflexões, Não será difícil para um leitor que tenha lido meus poemas encontrar pontes e correspondências entre eles e estas páginas. Para mim, a poesia e o pensamento são um sistema único, A fonte de ambos é a vida: escrevo sobre o que vivi e vivo. Viver também é pensar e, às vezes, atravessar essa fronteira na qual sentir e pensar se fundem: isso é poesia, Nesse meio tempo, o papel em que havia rascunhado minhas anotações na Índia foi amarelando e algumas páginas se perderam nas mudanças e viagens. Abandonei a ideia de escrever o livro». In Octavio Paz, A Dupla Chama. Amor e Erotismo, 1993, Agência Siciliano de Livros, 1994, Brasil, ISBN 852-670-650-0.

Cortesia de ASdeLivros/JDACT

JDACT, Octavio Paz, Literatura, 

Dan Brown. O Símbolo Perdido. «Hã... o que eu quis dizer foi que a noética é mais... esotérica. Katherine deu uma risada. Relaxe, estou brincando. Ouço isso o tempo todo. Não é de espantar, pensou Trish. Até mesmo o Instituto de Ciências Noéticas da Califórnia descrevia…»

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«(…) As duas mulheres passaram vários minutos conversando sobre o trabalho de Trish com meta-sistemas, falando sobre sua experiência de analisar, criar modelos e prever o fluxo de imensos campos de dados. É claro que o seu livro é avançado demais para mim, disse Trish, mas eu entendi o suficiente para ver uma intersepção com meu trabalho sobre meta-sistemas. Diz no seu blog que os modelos de meta-sistemas podem transformar o estudo da noética? Com certeza. Eu acredito que os meta-sistemas poderiam transformar a noética numa ciência de verdade. Ciência de verdade? – O tom de Katherine ficou um pouco mais duro. Ao contrário de...?

Ai, me…, que fora!

Hã... o que eu quis dizer foi que a noética é mais... esotérica. Katherine deu uma risada. Relaxe, estou brincando. Ouço isso o tempo todo. Não é de espantar, pensou Trish. Até mesmo o Instituto de Ciências Noéticas da Califórnia descrevia a disciplina numa linguagem misteriosa e difícil de entender, definindo-a como o estudo do acesso directo e imediato por parte da humanidade ao conhecimento além daquele disponível aos nossos sentidos normais e ao poder da razão. A palavra noético, como Trish havia descoberto, vinha do grego antigo nous, que podia ser traduzido aproximadamente como conhecimento interno ou consciência intuitiva. Tenho interesse no seu trabalho com meta-sistemas, disse Katherine, e em como ele pode se relacionar com um projecto no qual estou trabalhando. Por acaso estaria disposta a me encontrar? Eu adoraria fazer-lhe algumas perguntas.

Katherine Solomon quer fazer-me umas perguntas? Era como se Maria Sharapova tivesse lhe telefonado pedindo dicas sobre ténis. No dia seguinte, um Volvo branco parou em frente à sua casa e uma mulher atraente e esguia usando uma calça jeans saltou do carro. Trish na mesma hora se sentiu com meio metro de altura. Que maravilha, resmungou consigo mesma. Inteligente, rica e magra, e eu ainda devo acreditar que Deus é bom? Mas o jeito despretensioso de Katherine logo a deixou à vontade. As duas se acomodaram na imensa varanda dos fundos de Trish com vista para a propriedade de tamanho impressionante. Sua casa é incrível, comentou Katherine.

Obrigada. Tive sorte na faculdade e vendi a licença de um software que tinha desenvolvido. Relacionado com meta-sistemas? Um precursor dos meta-sistemas. Depois do 11 de Setembro, o governo começou a interceptar e analisar imensos campos de dados: e-mails de civis, ligações de telrmóveis, faxes, mensagens de texto, sites na internet, tudo em busca de palavras-chave ligadas a comunicações entre terroristas. Então eu desenvolvi um software que lhes permitia processar seu campo de dados de uma segunda forma, extraindo dele um outro produto de inteligência. Ela sorriu. Basicamente, o meu software lhes permite medir a temperatura dos Estados Unidos. Como assim? Trish riu». In Dan Brown, O Símbolo Perdido, 2009, Bertrand Editora, 2009, ISBN 978-972-252-014-0.

 Cortesia de BertrandE/JDACT

JDACT, Washington DC, Dan Brown, Literatura, Maçonaria, 

Por Amor a uma Mulher. Domingos Amaral. «Zulmira suspirou, as antigas emoções já vazias de significado. Quando jovens, somos loucos de ciúme. Na verdade, odiava Toledo, os cristãos, Afonso VI!»

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NOTA: Afonso Henriques, nascido em 1109, filho do conde Henrique e de dona Teresa, neto de Afonso VI de Leão e primo direito de Afonso VII. Tem uma relação amorosa com Elvira Gualter, da qual nasceram duas filhas, Urraca e Teresa Gualter; e outra com Chamoa Gomes, de quem tem dois filhos, Fernando e Pedro Afonso. Será reconhecido com rei de Portugal, em 1143, em Zamora.

Serra Morena, Córdova, Abril de 1126

«O marido de Zulmira disse que sim e então o persa atirou-lhe um saco e um cachimbo e Taxfin encheu-o. Depois, perguntou: Como o acendo? Pela primeira vez, o homem mexeu-se e dirigiu-se à lareira. Taxfin viu-o apanhar carvão em brasa com uma pinça de ferro. Depois, aproximou-se da cama e estendeu-lhe a pinça, e Taxfin acendeu o cachimbo nela. Deu umas passas, saboreando o fumo. Sabia bem, era haxixe de Marrocos. Uma onda de nostalgia invadiu-o. Sabes, disse ao homem, fumei muito haxixe aqui, em Hisn Abi Cherif, com alguns dos maiores poetas da Andaluzia a declamarem os seus versos à Zulmira. É disso que vou ter saudades. Não é de ter sido governador, ou de ter morto tantos cristãos. Vou é sentir saudades deste castelo de arenito vermelho, e da minha Zulmira a passear no jardim, entre as margaridas e as rosas. Deu uma nova passa no cachimbo e depois cerrou os dentes e disse: Abu Zhakaria vai matar-vos. Ignorando-o, o outro declarou: São as ordens do califa: matar-vos, matar a vossa mulher, e matar as filhas dela e de Hixam de Hisn Abi Cherif. Tranquilo, Taxfin apenas perguntou ao seu carrasco: Porque não vos matais depois, como mandava o Velho da Montanha? O alfange ergueu-se e caiu sobre ele com violência, degolando-o num só golpe.

Coimbra, Maio de 1126

As notícias correm depressa, mesmo entre regiões cristãs e mouras, e Zaida contou-me que, um mês depois da Páscoa, elas foram informadas de que Taxfin fora morto no castelo da serra Morena.

Foi na mesma tarde que a mãe lhes explicou porque não fora a Ricobayo. As coisas pareciam todas ligadas umas às outras, no passado, no presente e no futuro, era o que eu estava a concluir, nesta fase da investigação. Havia razões para tudo. Há sempre.

Ainda em Viseu, Zulmira pedira à rainha para regressar a Coimbra, em vez de a acompanhar à vassalagem a Afonso VII, que decorreria na povoação de Ricobayo, próxima de Zamora. As filhas haviam estranhado, era a segunda vez que a mãe inventava uma oportuna doença. Um ano antes, depois das visitas a Astorga e Sahagún, queixara-se de um misterioso mal-estar e abandonara a comitiva que seguia para Toledo. Contudo, só quando chegou a Coimbra é que Zulmira saciou a curiosidade das filhas.

Em Ricobayo estaria gente do tempo do imperador Afonso VI. Tal como em Toledo, no ano passado. Gente que se lembra de mim, há muitos anos. Convidou-as a sentarem-se na sua cama, e recuou várias décadas, à época em que Afonso VI, avô de Afonso Henriques e do agora Afonso VII, era o imperador de Leão, Castela e Galiza, e dominava as taifas de Sevilha, Badajoz e Mérida, obrigando vários reis mouriscos a pagarem-lhe chorudos tributos.

Um desses era Al-Mutamid, rei de Sevilha. Embora mais dado à poesia do que à guerra, e mais entusiasta de rapazes do que de mulheres, Al-Mutamid casara e tivera uma única filha, chamada Zaida, que mais tarde obrigara a desposar o wali de Córdova, Ismail-Ibn-Abbad, para poder anexar essa cidade à sua Sevilha. Da união forçada entre Zaida e Ismael nascera Zulmira. Quando esta tinha treze anos, furioso com as submissões dos reis árabes ao imperador cristão, o califa Yusuf decidiu atacar Sevilha. Assustado, o rei-poeta Al-Mutamid ordenou ao seu genro Ismail que pedisse ajuda a Afonso VI. Não podendo abandonar Córdova, cujo cerco estava próximo, Ismail enviou a Toledo a sua esposa, Zaida.

Acompanhei minha mãe nessa embaixada, recordou Zulmira. Pouco depois de partirem, a tragédia abateu-se sobre Córdova. A tomada da velha capital do califado foi uma carnificina sem nome, as tropas de Ismail foram dizimadas pelos sanguinários algozes de Yusuf, e as ruas tingiram-se de vermelho, com o sangue dos cordoveses derrotados.

O último a morrer foi meu pai, Ismail, o governador de Córdova. Quando a notícia chegou a Toledo, tínhamos acabado de nos instalar. Zulmira, que muito amava o pai, ficou destroçada. Porém, sua mãe Zaida não perdeu tempo, e pediu uma audiência ao imperador. Nesse dia, algo de espantoso aconteceu,  murmurou Zulmira.

Afonso VI tinha um talento especial para seduzir as mulheres e comoveu-se com a solidão de Zaida, que julgava uma viúva sofrida.Com quase cinquenta anos, o imperador já se casara três vezes, tinha várias filhas, entre as quais Dona Urraca e Dona Teresa, mas nunca gerara qualquer varão. Encantado com aquela bela princesa moura, converteu-a e, algum tempo depois, engravidou-a! Quando Zulmira estava prestes a fazer quinze anos, veio ao mundo o seu meio-irmão Sancho, o primeiro varão do imperador da Hispânia!

Odiei-o desde o primeiro dia, confessou Zulmira. Espantada, a filha Zaida perguntou: Porquê? Zulmira suspirou, as antigas emoções já vazias de significado. Quando jovens, somos loucos de ciúme. Na verdade, odiava Toledo, os cristãos, Afonso VI! Órfã de pai, muçulmana numa corte cristã, recusava assimilar os costumes da capital da Hispânia. Ao contrário da mãe, que se convertera à Bíblia, Zulmira mantinha-se fiel ao Corão». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Por Amor a uma Mulher, Casa das Letras, LeYa, 2015, ISBN 978-989-741-262-2.

Cortesia de CdasLetras/LeYa/JDACT

JDACT, Domingos Amaral, A Arte, Literatura, 

quarta-feira, 26 de julho de 2023

Por Amor a uma Mulher. Domingos Amaral. «… que fumam muito haxixe antes de matarem, para terem mais coragem? O outro respondeu a Taxfin com uma pergunta: Queres fumar haxixe antes de morrer?»

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NOTA: Afonso Henriques, nascido em 1109, filho do conde Henrique e de dona Teresa, neto de Afonso VI de Leão e primo direito de Afonso VII. Tem uma relação amorosa com Elvira Gualter, da qual nasceram duas filhas, Urraca e Teresa Gualter; e outra com Chamoa Gomes, de quem tem dois filhos, Fernando e Pedro Afonso. Será reconhecido com rei de Portugal, em 1143, em Zamora.

Serra Morena, Córdova, Abril de 1126

«Ouviu o outro suspirar e afirmar: Estais a mentir. Foi com Abu Zhakaria para Coimbra? Taxfin ficou aterrado. Como é que ele sabia? O homem devia ler os seus os pensamentos, pois elucidou-o: O vosso leal Abu foi imprudente. Falou de mais em Córdova. Por lá ninguém gosta muito de vós. Não era novidade, mas pelo menos Taxfin conseguira desviar a atenção dele. Esperava que a segunda criada se conseguisse manter escondida. Onde estaria? Olhou para a cabeça cortada na sua cama. A outra criada, mais nova do que a que morrera, costumava ir muitas vezes à arrábida onde estava enterrado o primeiro marido de Zulmira. No dia em que Abu Zhakaria partira, Taxfin vira-a caminhar para lá, um pouco antes de o grupo se fazer à estrada. Rezou para que estivesse escondida, e que depois o sepultasse no mausoléu. O outro falou novamente. Haveis ouvido falar de Alamut? Apesar da escuridão, Taxfin reparou que o homem usava vestes claras.

Lembrou-se de que ele andava sempre com uma túnica branca, apenas com um cinto vermelho, onde trazia o alfange e dois punhais. Alamut... A lenda era antiga, Taxfin já a escutara na boca dos que haviam visitado a Pérsia. Cinquenta anos antes, um homem sábio tomara conta de um castelo inexpugnável, construído no topo de um monte íngreme, onde só se chegava por uma das encostas. O Ninho da Águia, como chamavam ao castelo de Alamut, ficava numa região montanhosa no extremo norte da Pérsia. O homem que durante décadas ali reinara tinha por nome Hassan-Ibn-Sabbah, e criara uma legião de seguidores islâmicos. Chamavam-lhe o Velho da Montanha, e a sua fama sanguinária espalhara-se. Foi ele quem me treinou, revelou a Morte com Duas Pernas.

Aos dez anos, fora retirado aos pais e entregue em Alamut, como acontecia a muitos rapazes na região. Ali conhecera o líder espiritual e fora educado com a leitura dos textos sagrados do Corão. Éramos os seus filhos queridos e todos o amávamos. Hassan-Ibn-Sabbah treinava-os não só para serem dedicados muçulmanos, mas também para se tornarem guerreiros extraordinários, uma cavalaria espiritual para seu uso exclusivo. Selecionava os mais hábeis e formou um pequeno grupo de leais soldados, os fedayin, que davam a vida por ele e pelo Corão. Se nos mandasse atirar de um penhasco, assim fazíamos. Vários morreram à minha frente, e a sua alma foi ter com as setenta virgens que por nós esperam no céu, contou o fedayin.

Com o tempo, a seita de Alamut tornou-se perigosa para os seus vizinhos e o califa de Bagdad decidiu destruí-la. Porém, Hassan-Ibn-Sabbah era um génio e começou a usar tácticas até aí nunca tentadas. O Velho da Montanha enviava fedayin para as cortes dos inimigos, para matarem alguém, e cumprido o seu dever matarem-se também. As pessoas começaram a chamar-lhes haschischins ou assassins, pois eram certeiros e letais. Quem Hassan-Ibn-Sabbath declarasse que devia morrer era morto por um seu leal servidor. Depois, o assassin matava-se, para não ser preso.

Taxfin mantinha-se em silêncio. A Morte com Duas Pernas nunca deixara ninguém com vida, degolava todos os seus opositores. Contudo, nunca se matara, ao contrário do que dizia ter acontecido aos seus colegas de Alamut. Um dia fui escolhido por Hassan-Ibn-Sabbath para uma missão muito perigosa e longínqua, no Egipto. E cumpri-a, matando quem ele me ordenara. Mas não me matei como os outros fedayin. O homem riu-se para si próprio, emitindo um som maligno, como se estivesse possuído por um demónio. Depois, acrescentou: Já sabia o que ia acontecer em Alamut. Nem um homem santo e glorioso consegue enganar a morte, explicou o fedayin. Nenhum dos seguidores e sucessores de Hassan-Ibn-Sabbath conseguiu manter a união, e pouco a pouco os valorosos fedayin foram partindo. Apesar de bons religiosos e bons guerreiros, muitos perderam a fé, outros a capacidade de lutar. Sem Hassan-Ibn-Sabbath para iluminar as suas almas, apagaram-se na escuridão dos tempos. Fui o único que prossegui o destino em que me iniciaram.

Do Egipto, partira à procura de quem pagasse os seus serviços. Sabia matar muito bem, mas só no califado almorávida encontrara alguém que o compreendera. Ali Yusuf acolheu-me, disse o fedayin. Há quase uma década que aquele carniceiro matava para o califa de Marraquexe, e Taxfin suspirou de novo. A perna doía-lhe, mexeu-se um pouco na cama. Depois, perguntou: É verdade o que dizem dos fedayin, que fumam muito haxixe antes de matarem, para terem mais coragem? O outro respondeu a Taxfin com uma pergunta: Queres fumar haxixe antes de morrer?» In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Por Amor a uma Mulher, Casa das Letras, LeYa, 2015, ISBN 978-989-741-262-2.

Cortesia de CdasLetras/LeYa/JDACT

JDACT, Domingos Amaral, A Arte, Literatura,

Por Amor a uma Mulher. Domingos Amaral. «Onde está ela? Taxfin não o iria ajudar. Por isso, mentiu: Partiu ontem à noite, para Córdova. O filho está doente»

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NOTA: Afonso Henriques, nascido em 1109, filho do conde Henrique e de dona Teresa, neto de Afonso VI de Leão e primo direito de Afonso VII. Tem uma relação amorosa com Elvira Gualter, da qual nasceram duas filhas, Urraca e Teresa Gualter; e outra com Chamoa Gomes, de quem tem dois filhos, Fernando e Pedro Afonso. Será reconhecido com rei de Portugal, em 1143, em Zamora.

Viseu, Domingo de Páscoa, Abril de 1126

«(… ) O visado riu-se. Parecia bonacheirão e amável, mas também devia ser tímido, como o Santinho, pois nada disse. Ramiro olhou para o que faltava, a quem inicialmente não vira a cara, pois guiava o cavalo onde ia o Ameixa. Era muito mais velho do que os outros, tinha os cabelos brancos e o rosto cheio de rugas, e Ramiro admitiu que fosse até mais idoso do que Gondomar. Chamam-me Velho,– apresentou-se ele. E é o que eu sou, pois lutei ainda com El Cid em Valência, há mais de quatro décadas!

A referência ao grande guerreiro que os trovadores louvavam fez nascer um silêncio respeitoso no grupo, mas o Velho quebrou-o, perguntando se Ramiro já tinha morto alguns mouros. O rapaz confessou que nunca estivera em combates e o Velho orgulhou-se: Matei mais de cem sarracenos. Apontou para o arco e para as flechas de Ramiro e previu: E vós também ides matar em breve. Ramiro acenou com a cabeça, mas o velho rematou: Ou morrer.

Os outros riram-se muito e nesse momento Gondomar reapareceu e disse que estava na altura de continuarem, e todos montaram os cavalos, dois a dois, e regressaram à estrada. Por vezes, levantam-se-me dúvidas sobre a forma como Gondomar aceitou Ramiro na Ordem. Porque mudou de ideias? Só porque admirou a persistência do rapaz? Terá ele pensado que Ramiro, por ser filho de Paio Soares, sabia do segredo da relíquia? Ou terá desejado mantê-lo por perto, na esperança de que o pai viesse procurá-lo a Soure? É difícil ter a certeza, à luz dos acontecimentos posteriores. É por essas e por outras que esta foi uma investigação tão longa e difícil. A verdade podia estar escondida em qualquer lado, ou em lado nenhum.

Serra Morena, Córdova, Abril de 1126

A velha criada de Zulmira foi a única testemunha dos acontecimentos trágicos que a seguir descrevo. Escondida dentro de um armário, jurou a Mem que sobrevivera por acaso. Ela dormia com a outra criada lá em baixo, junto às cozinhas, mas ouvira uma portada bater, no andar de cima, e levantara-se para a ir fechar.

O ferrolho deve estar estragado, pensou. Tinha de dizer a Taxfin que mandasse substituí-lo. Podiam pedir ao almocreve que trouxesse outro de Córdova, havia lá bons ferreiros. De súbito, alarmou-se! Ouviu um gemido de sofrimento no andar de baixo. Abu Zhakaria já partira, mas as pessoas em Córdova e nas aldeias em redor consideravam o castelo de Hisn Abi Cherif seguro, os portões estavam sempre cerrados à noite, era praticamente impossível alguém entrar. Contudo, uma vaga de medo percorreu o seu corpo. Num pulo, aproximou-se de um armário, na sala ao lado do quarto de Taxfin. Já enfiada lá dentro, ouviu passos e pouco depois uma voz, no quarto de Taxfin.

Matei a vossa criada, cortei o pescoço à velha. Taxfin estava deitado, acordara com o barulho da portada a bater e vira um vulto entrar no quarto. Agitado, reconheceu de imediato aquela voz, ouvira-a muitas vezes, nos nove anos que estivera com o califa. Aquele timbre rouco e ciciado era inconfundível. A Morte com Duas Pernas encontrava-se ali, no seu quarto, no seu castelo! Encostou-se para trás na cama, com as costas apoiadas na parede.

O outro continuou junto à porta, talvez temesse a chegada de alguém. De repente, atirou algo na direção de Taxfin, algo que atravessou o quarto a voar e aterrou aos pés dele. Era a cabeça de uma das criadas velhas. Em silêncio, Taxfin rezou pela mulher morta. O homem acrescentou: Nem me viu. Depois, perguntou: Há mais alguém neste castelo, além de vós? O marido de Zulmira manteve-se calado e o homem insistiu: Vi roupas de outra mulher. Onde está ela? Taxfin não o iria ajudar. Por isso, mentiu: Partiu ontem à noite, para Córdova. O filho está doente». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Por Amor a uma Mulher, Casa das Letras, LeYa, 2015, ISBN 978-989-741-262-2.

Cortesia de CdasLetras/LeYa/JDACT

JDACT, Domingos Amaral, A Arte, Literatura,

A Vida Sexual de Catherine M. Catherine Millet- «Colocavam-se novamente as mesmas perguntas: seis era um número razoável ou se poderia ter mais? Que diferença de idade poderia haver entre eles? Acrescentava-se a divisão entre meninas e meninos»

Cortesia de wikipedia

 O Número

«Quando criança, eu era muito preocupada com os números. A lembrança que guardamos dos pensamentos ou das acções solitárias é muito clara: são as primeiras chances dadas à consciência de se mostrar a si mesma. Os acontecimentos compartilhados, por outro lado, permanecem presos à incerteza dos sentimentos que os outros nos inspiram (admiração, medo, amor ou aversão) e que, quando crianças, somos ainda menos aptos a enfrentar e mesmo compreender do que na idade adulta.

Lembro-me, então, particularmente dos pensamentos que, toda noite antes de adormecer, me aliciavam para uma escrupulosa ocupação de contagem. Pouco tempo depois do nascimento de meu irmão (eu tinha então três anos e meio), minha família mudou-se para um novo apartamento. Durante os primeiros anos em que moramos lá, minha cama ficava no cómodo maior, diante da porta. Olhando fixamente para a luz que vinha da cozinha, do outro lado do corredor, onde minha mãe e minha avó ainda trabalhavam, eu não conseguia conciliar o sono enquanto não tivesse considerado, em sequência, várias questões. Uma delas dizia respeito ao facto de alguém ter muitos maridos. Não pensava sobre a possibilidade de que tal situação existisse, o que me parecia óbvio, mas, evidentemente, sobre suas condições.

Uma mulher poderia ter muitos maridos ao mesmo tempo ou apenas um depois do outro? Neste caso, quanto tempo deveria ficar casada com um antes de poder trocar por outro? Quantos maridos ela razoavelmente poderia ter: alguns, cinco ou seis, ou um número muito maior, ilimitado? Como eu agiria quando crescesse? Com o passar dos anos, a contagem de maridos foi substituída pela contagem de filhos. Acho que me sentia menos vulnerável à incerteza quando fixava meus devaneios nos traços de um homem identificado (actores de cinema, um primo alemão etc.), com quem me encontrava sob o signo da sedução. Imaginava assim, de maneira mais concreta, minha vida de mulher casada e, portanto, a presença de crianças.

Colocavam-se novamente as mesmas perguntas: seis era um número razoável ou se poderia ter mais? Que diferença de idade poderia haver entre eles? Acrescentava-se a divisão entre meninas e meninos.

Não posso rememorar esses pensamentos sem ligá-los a outras obsessões que também me ocupavam. Na relação que eu tinha estabelecido com Deus, todas as noites ocupava-me com Sua alimentação e com a enumeração dos pratos e dos copos d'água que eu, em pensamento, Lhe servia, preocupada com a quantidade certa, com o ritmo da transmissão etc. Esta obsessão se alternava com as interrogações sobre o preenchimento de minha vida futura com maridos e filhos.

Eu era muito religiosa, e é possível que a confusão na qual eu percebia a identidade de Deus e de Seu filho tenha favorecido minha inclinação pela actividade de contagem. Deus era a voz sonante que, sem mostrar o rosto, lembrava a ordem aos homens.

Mas tinham-me ensinado que Ele era também o boneco de gesso rosa que eu colocava todos os anos no presépio, o infeliz pregado na cruz diante do qual rezávamos, apesar de um e outro serem também Seu filho, da mesma maneira que uma espécie de fantasma se chamava Espírito Santo. Enfim, eu sabia muito bem que José era o marido da Virgem e que Jesus, sendo Deus e filho de Deus, O chamava de Pai. A Virgem era não apenas a mãe de Deus, mas dizia-se também Sua filha.

Um dia, quando cheguei à idade de frequentar o catecismo, quis ter uma conversa com um padre. Meu problema era o seguinte: eu queria tornar-me religiosa, casar com Deus e ser missionária numa Africa onde pululavam povos desprovidos, mas desejava também ter maridos e filhos. O padre era um homem lacônico, e interrompeu a conversa, julgando minha preocupação prematura.

Até que nascesse a ideia deste livro, nunca havia pensado muito sobre minha sexualidade. Tinha, no entanto, consciência das múltiplas relações precoces que vivi, o que é pouco costumeiro, sobretudo para meninas, pelo menos no meio em que cresci. Deixei de ser virgem aos dezoito anos, que não é especialmente cedo, mas participei de uma suruba pela primeira vez nas semanas que se seguiram a minha defloração». In Catherine Millet, A Vida Sexual de Catherine M, Editora Ediouro, 2001, ISBN 978-843-397-791-5.

Cortesia de EEdiouro/Anagrama/JDACT

JDAXT, Catherine Millet, Literatura,

segunda-feira, 24 de julho de 2023

Soror Isabel (1673-1752). Jorge Duque Fernandes. «As mulheres, afinal, estão também noutros textos, manuscritos e impressos, que jazem nas bibliotecas e arquivos, sem que, ao longo de séculos, a investigação sistemática lhes revelasse os nomes e as obras…»

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Com a devida vénia ao Doutor Jorge Duque Fernandes

«Na revalorização crescente da contribuição das mulheres para o saber e para a sociedade; e no questionar das razões que levaram à sua quase exclusão do discurso historiográfico, continuava, porém, a impor-se a omissão dos historiadores sobre as escritoras portuguesas. Os números assim o confirmam: nos manuais de história da literatura portuguesa publicados até hoje a percentagem das autoras referidas, anteriores ao século XX, varia entre os 3% e os 5%. Assim se explicará que os investigadores que trabalham sobre a autoria feminina portuguesa não se debrucem sobre aquelas escritoras, mas antes sobre as da contemporaneidade, cronologicamente situadas depois de 1900.

Considera-se mesmo que as autoras omissas na história da literatura portuguesa e, em consequência, a presença de autores do sexo masculino fez com que esta última fosse considerada a autoria literária por excelência. Isto explicará o desinteresse geral das instituições e academias em dedicar-se a projectos que visem as escritoras anteriores ao século XX. Vanda Anastácio aponta que: Tende-se a pensar que o que não se vê não existe. Que o que não foi dito se apagou, afogado em silêncio. Mas as mulheres estão muito presentes no discurso dos autores do passado, nomeadamente sobre o cultivo das virtudes e sobre os perigos que o saber induziria no seu sexo, suposto como propenso à fragilização daquelas.

As mulheres, afinal, estão também noutros textos, manuscritos e impressos, que jazem nas bibliotecas e arquivos, sem que, ao longo de séculos, a investigação sistemática lhes revelasse os nomes e as obras, por géneros, nomeadamente as que escreveram paratextos e reinvindicações de autoria, como a Senhora dona Filipa (1435-1497), filha do Infante Pedro, Duque de Coimbra, e da Infanta dona. Isabel, condessa de Urgel, autora do século XV, dona Leonor Noronha (1488-1563), Luísa Sigeia (1522-1560), Públia Hortênsia Castro (1548-1595), Soror Maria do Baptista (1570-1595), Soror Maria  Mesquita Pimentel (†1639), dona Joana Josefa Meneses, condessa da Ericeira (1651-1709), Teresa Margarida Silva Orta (1711-1792), Soror Benta do Céu (viva em 1766), Rita Clara Freire Andrade (1758-d. 1791), Francisca Possolo Costa (1783-1838) e dona Leonor Almeida Portugal Lorena Lencastre, marquesa de Alorna (1750-1839). E as que escreveram sobre mística, como Soror Mariana da Purificação (1623-1695), Soror Isabel do Menino Jesus (1673-1752), a autora que estudamos; e Soror Mariana Josefa Joaquina de Jesus (†1783). E as que foram autoras de regras de vida, de ditos, sentenças e máximas8, como a Senhora dona Maria (1538-1577), filha do Infante Duarte e da Infanta dona Isabel, duques de Guimarães, mulher de Alexandre Farnésio, duque de Parma e Piacenza; dona Joana Gama (†1586) e Soror Maria do Céu (1658-1753). E as que escreveram ficção narrativa, como Soror Madalena da Glória (n. 1672), Soror Maria do Céu (1658-1753), Soror Joana Josefa dos Serafins (1722), Maria Clara Júnior (1816) e, novamente, Francisca Possolo Costa. E as que escreveram memórias biografias e autobiografias, como a referida Soror Mariana da Purificação, Soror Antónia Margarida de Castelo Branco (1652-1717); de novo, Soror Benta do Céu, e dona Mariana Bernarda Távora, condessa de Atouguia (1722-d.1788). E as que escreveram prosa histórica, académica e de circunstância, como dona Maria Micaela Prazeres (1761) e dona Mariana Vitória Atalaia Colaço Castelo Branco (1783). E as que produziram no género epistolográfico, como a rainha dona Catarina (1507-1578), mulher de João III; a Infanta dona Maria (1521-1577), filha do rei Manuel I e da rainha dona Leonor; de novo, Luísa Sigeia, a Senhora dona Maria, duquesa de Parma; e dona Leonor Almeida Portugal Lorena Lencastre, marquesa de Alorna; Soror Violante do Céu (1658-1753), dona Joana Vasconcelos Meneses (c. 1625-1653), dona Isabel Castro, condessa de Assumar (1665-1724), dona Leonor Tomásia Távora, marquesa de Távora (1700-1759), Soror Maria Joana (1712-1724), Soror Feliciana Maria Milão (1632 ou 1639-1705), dona Filipa Noronha (séc. XVIII), rainha dona Mariana Vitória (1718-1781), mulher de José I; dona Teresa Josefa Melo Breyner, condessa do Vimieiro (1739-d.1793); e dona Joana Isabel Lencastre Forjaz (n. 1745)». In Jorge Duque Fernandes, Soror Isabel do Menino Jesus, Vida e Obra de uma Escritora Mística 1673-1752, Tese para obtenção do grau de Doutor em História, 2016, Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras, Fundação para a Ciência e Tecnologia, SFEH/BD/79496/2011.

Cortesia de FCT/CMM/BMP/JDACT

JDACT, Jorge Duque Fernandes, História, Religião, Literatura, Caso de Estudo, 

sábado, 22 de julho de 2023

Os Enamoramentos. Javier Marías. «Bien es verdad que él habría sufrido muy pocas para lo que es el destino más común de los hombres, lo cual lo ayudaría a conservar aquellos ojos confiados y sonrientes»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Quizá era su mujer quien se la hacía, en conjunto, hay personas que nos hacen reír aunque no se lo propongan, lo logran sobre todo porque nos dan contento con su presencia y así nos basta para soltar la risa con muy poco, sólo con verlas y estar en su compañía y oírlas, aunque no estén diciendo nada del otro mundo o incluso empalmen tonterías y guasas deliberadamente, que sin embargo nos caen todas en gracia. El uno para el otro parecían ser de esas personas; y aunque se los veía casados, nunca sorprendí en ellos un gesto edulcorado ni impostado, ni tan siquiera estudiado, como los de algunas parejas que llevan años conviviendo y tienen a gala exhibir lo enamoradas que siguen, como un mérito que las revaloriza o un adorno que las embellece. Era más bien como si quisieran caerse simpáticos y agradarse antes de un posible cortejo; o como si se tuvieran tanto aprecio y querencia desde antes de su matrimonio, o aun de su emparejamiento, que en cualquier circunstancia se habrían elegido espontaneamente, no por deber conyugal, ni por comodidad, ni por hábito, ni por lealtad siquiera, como compañero o acompañante, amigo, interlocutor o cómplice, en la seguridad de que, fuera lo que fuese lo que aconteciera o se diese, o lo que hubiera que contar o escuchar, sempre sería menos interesante o divertido con un tercero. Sin ella en el caso de él, sin él en el caso de ella. Había camaradería, y sobre todo convencimiento.

Miguel Desvern o Deverne tenía unas facciones muy gratas y una expresión varonilmente afectuosa, lo cual lo hacía atractivo de lejos y me llevaba a suponerlo irresistible en el trato. Es probable que me fijara antes en él que en Luisa, o que fuera él quien me obligara a fijarme también en ella, ya que, si a la mujer la vi sin su marido a menudo, éste se marchaba antes de la cafetería y ella se quedaba unos minutos más casi siempre, a veces sola, fumando, a veces con una o dos compañeras de trabajo o madres del colegio o amigas, que alguna que otra mañana se les agregaban a última hora, cuando él ya estaba a punto de despedirse, al marido no llegué a verlo nunca sin su mujer al lado. Para mí su imagen sola no existe, es con ella (fue una de las razones por las que al principio no lo reconocí en el periódico, porque allí no estaba Luisa). Pero en seguida pasaron a interesarme los dos, si ese es el verbo.

Desvern tenía el pelo corto, tupido y muy oscuro, con canas solamente en las sienes, que se le adivinaban más crespas que el resto (si se hubiera dejado crecer las patillas, quién sabe si no le habrían aparecido unos caracolillos incongruentes). Su mirada era viva, sosegada y alegre, con un destello de ingenuidad o puerilidad cuando escuchaba, la de un individuo al que la vida en general divierte, o que no está dispuesto a pasar por ella sin disfrutar de los mil aspectos graciosos que encierra, incluso en medio de las dificultades y las desgracias. Bien es verdad que él habría sufrido muy pocas para lo que es el destino más común de los hombres, lo cual lo ayudaría a conservar aquellos ojos confiados y sonrientes. Eran grises y parecían registrarlo todo como si todo fuera novedoso, hasta lo que se les repetía a diário insignificante, aquella cafetería de la parte alta de Príncipe de Vergara y sus camareros, mi figura muda. Tenía hoyuelo en la barbilla. Me hacía acordarme de algún diálogo de película en el que una actriz le preguntaba a Robert Mitchum o a Cary Grant o a Kirk Douglas, no recuerdo, cómo se las ingeniaba para afeitarse allí, a la vez que se lo tocaba con el dedo índice. A mí me daban ganas de levantarme de mi mesa todas las mañanas, acercarme hasta la de Deverne y preguntarle lo mismo, y tocarle a mi vez el suyo con el pulgar o el índice, levemente. Siempre iba muy bien afeitado, el hoyuelo incluído». In Javier Marías, Los Enamoramientos, Lectulandia, epub 1,0, Os Enamoramentos, Alfaguara Portugal, 2015, ISBN 978-989-877-547-4.

Cortesia de Lectulandia/Alfaguara Portugal/JDACT

JDACT, Javier Marías, Literatura, Espanha,

Soror Isabel (1673-1752). Jorge Duque Fernandes. «… não só por Soror Isabel do Menino Jesus, como pelas restantes autoras portuguesas, ainda pouco conhecidas. O mesmo poderemos dizer em relação aos místicos portugueses, de ambos os sexos…»

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Com a devida vénia ao Doutor Jorge Duque Fernandes

«Frequentes vezes, é este religioso apontado como autor da obra, o que convém rectificar, porque, de facto, ainda que possa ter orientado Soror Isabel do Menino Jesus na organização do volume, a autoria pertence a esta mulher, oriunda de uma família do chamado estado do meio, cuja alfabetização foi rápida e polémica, numa vila acandorada na Serra do Sapoio onde as mulheres, como por todo o reino, não sabiam sequer assinar. O volume contém, entre os seus diferentes textos, a sua Vida, que, tanto quando sabemos, é a primeira autobiografia espiritual de autoria feminina que se imprimiu em Portugal. O impresso saiu com uma bela estampa retrato de Soror Isabel, posando com o livro nas mãos, obra do refinado gravador francês Jean Baptiste Michel Le Bouteaux (1682-1764), activo no reinado de João V. Como supomos na nossa tese, tratar-se-á de um retrato autêntico, o primeiro de um autor do sexo feminino que terá saído com a sua obra impressa no nosso país.

A tese decorreu em estreita ligação com vários projectos sobre escritoras e redes culturais femininas na Europa, sediados no Centro de Estudos Clássicos da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, coordenados por Vanda Anastácio, professora na mesma Faculdade, que nos orientou em todos os trabalhos; e contou com o apoio da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT), através da celebração de um contrato para a concessão de uma bolsa de doutoramento, a 13 de Março de 2013, com início da bolsa a 1 de Abril desse ano e fim a 31 de Março de 2016. Quase até à conclusão, foi co-orientada por Isabel Drumond Braga, professora na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

Desenvolvida numa necessária interdisciplinaridade, sendo várias as áreas científicas que concorrem para a sua finalidade, a tese situa-se, sobretudo, no âmbito da História Moderna, debruçando-se sobre assuntos relacionados com a cultura portuguesa do período moderno, uma vez que o seu objecto é uma escritora dos séculos XVII e XVIII. Uma outra área é frequentemente visitada ao longo do texto, a da Teologia Espiritual, não porque a abordagem seja tão teológica quanto histórica, mas porque é necessário recorrer a vários conceitos daquela área, trata-se de abordar uma escritora mística, para alumiar minimamente a obra de Soror Isabel do Menino Jesus, que descreve numerosos fenómenos místicos e ensina um método de ascese, definido a partir da direcção espiritual que recebeu ao longo dos anos, das suas leituras de livros espirituais e, sobretudo, na sua própria prática; método clássico, numa escada de três vias espirituais: a via purgativa, a via iluminativa e a via unitiva, esta com três noites escuras, o ilapso e a união, ou morte mística. Os apontamentos teológicos que fazemos ao longo da tese, para além de tentarem uma simples aproximação ao contexto da espiritualidade da época moderna, e à própria autora, não aprofundado nenhum dos conceitos, convidarão, porém, a um estudo da obra desta mística portuguesa no âmbito teológico, o que não é da nossa competência. A nossa tese, é, aliás, uma abordagem estritamente limitada à sua finalidade e objectivos, atrás enunciados, e ainda pela ponderação do número de páginas. Tratar-se-á, ainda assim, da mais extensa abordagem que até hoje foi realizada à autora, o que não será de admirar, uma vez que o seu caso era semelhante aos de muitas outras autoras portuguesas que, entre o final do século XV e o início do século XIX, estão ainda esquecidas ou são praticamente desconhecidas.

No manuscrito autógrafo de Soror Isabel do Menino Jesus estão, na verdade, várias obras, e não apenas uma; ou, para dizer de um outro modo, estão trinta e nove textos distintos, correspondentes aos quatro géneros literários que praticou, não sabemos se exclusivamente: autobiografia espiritual (uma Vida); tratado (um Tratado Místico); súplica (uma Súplica ao Ministro Provincial); e epistolografia (vinte Cartas a um Religioso, quinze Cartas a uma Religiosa e uma Carta à Abadessa e Religiosas). Estes textos foram passados a limpo e acrescentados pela autora num só volume, com intenção de o legar ao seu prelado, o referido provincial, prevendo-se a sua impressão, que, entretanto, já a autora não viu, por morrer antes de se concluírem os trâmites necessários, a 5 de Outubro de 1752. O volume sairia cinco anos depois, em 1757, bastante atrasado em relação àquela intenção, o que supomos ser devido, não a desconfianças acerca da idoneidade da sua autora ou aos seus escritos, como se pensa, mas ao facto de o manuscrito estar em Lisboa no dia 1 de Novembro de 1755, tendo sobrevivido ao terramoto e suas réplicas. O mau estado em que ficou o Convento de São Francisco de Xabregas, cabeça da Província dos Algarves da Ordem seráfica, terá imposto ou demoras à impressão, porque a prioridade seria reconstruir a casa.

Não nos é possível conhecer muito acerca da recepção que teve o livro, mas é certo que os poucos exemplares que se conservam ou deixaram notícias passaram pelas mãos de religiosos e religiosas, e de pessoas seculares. O advento das Luzes em Portugal poderá ter influindo sobre o interesse por estas obras de espiritualidade, mas não conseguiu cortar o curso dos exemplares, cujo número saído da oficina desconhecemos, porque esses poucos que nos chegaram continuaram a ser lidos. Também a extinção das Ordens religiosas, iniciada em 1834, não logrou apagar a presença da autora e dos seus textos, pelo menos no seu convento, onde a última religiosa sobreviveu quase até ao século XX e onde a comunidade de mulheres e meninas que ali estava recolhida continuou a recordá-la.

A sua campa, situada no coro baixo do extinto convento, terá continuado a ser venerada até aos anos 30, porque a sua fama sanctitatis atravessou os séculos, embora cada vez mais ténue.

Reconhecer a importância desta autora, através de estudos, foi um desafio abraçado por outros, ainda antes de a termos escolhido como objecto da nossa tese. É nossa esperança que este contributo permita agora consideráveis avanços e, assim, estimule o interesse dos mesmos e de outros investigadores, não só por Soror Isabel do Menino Jesus, como pelas restantes autoras portuguesas, ainda pouco conhecidas. O mesmo poderemos dizer em relação aos místicos portugueses, de ambos os sexos, dos quais até agora pouco se sabe.

O Estudo da Arte

Ao abrir Uma Antologia Improvável. A Escrita das Mulheres (Séculos XVI a XVIII), na qual colaborámos, a sua organizadora, Vanda Anastácio, lança uma questão pertinente: Será possível escrever uma História da Literatura Portuguesa anterior a 1900 que inclua as mulheres? Ou, dito de outro modo: será possível falar de escritoras antes da contemporaneidade?.

Esta questão parece ter despertado o interesse de vários investigadores desde o início da década de 90 do século passado, em Portugal e no Brasil, que se viram, no entanto, confrontados com a escassez de dados acerca da leitura e da escrita das mulheres nesse período». In Jorge Duque Fernandes, Soror Isabel do Menino Jesus, Vida e Obra de uma Escritora Mística 1673-1752, Tese para obtenção do grau de Doutor em História, 2016, Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras, Fundação para a Ciência e Tecnologia, SFEH/BD/79496/2011.

Cortesia de FCT/CMM/BMP/JDACT

JDACT, Jorge Duque Fernandes, História, Religião, Literatura, Caso de Estudo,

Estudos sobre a Arte d’Os Lusíadas. António José Saraiva. «Que gloriosas palmas tecer vejo com que Vitória a fronte lhe coroa, quando, sem sombra vã de medo ou pejo, toma a ilha ilustríssima de Goa!»

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«Assim Tétis, na Ilha dos Amores,

Com doce voz está subindo ao Céu

Altos varões que estão por vir ao mundo,

Cujas claras ideas viu Proteu

Num globo vão, diáfano, rotundo.

Nesses casos usa Camões o futuro, mas um futuro que é apenas um presente inactual, invisível aos homens, mas visível aos deuses. O futuro é também, portanto, um tempo verbal que denota, como o presente, a intemporalidade; por isso acontece que na voz dos deuses presente e futuro são interpermutáveis, como se vê nas estrofes consagradas por Tétis a Afonso de Albuquerque:

Mas oh! que luz tamanha que abrir sinto

(Dizia a ninfa e a voz alevantava)

(...)

Esta luz é do fogo e das luzentes

Armas com que Albuquerque irá amansando

De Ormuz os Párseos, por seu mal valentes,

(...)

Que gloriosas palmas tecer vejo

Com que Vitória a fronte lhe coroa,

Quando, sem sombra vã de medo ou pejo,

Toma a ilha ilustríssima de Goa!

(...)

Eis já sobr'ela torna e vai rompendo

Por muros, fogo, lanças e pelouros,

(...)

Irão soldados ínclitos fazendo

Mais que leões famélicos e touros.

Segundo a nossa hipótese, a abolição do tempo, que Camões procurou exprimir por um jogo especial dos tempos verbais, está relacionada com o facto de, desde o começo do Poema, o Autor se colocar na atitude de quem mostra sobre uma superfície visível acontecimentos que o olhar abrange. No interior do Poema essa atitude converte-se em processo literário. É assim que, ao longo de quase metade do canto VIII, Paulo da Gama explica ao catual as tapeçarias da nau capitaina, que representam heróis em acção, desde Luso, primeiro povoador de Portugal, até Duarte Meneses, capitão em Marrocos. É uma boa parte da história de Portugal que por este processo é referida. Paulo da Gama descreve um por um os quadros que estão diante dos seus olhos e dos do catual, começando cada explicação por expressões como: Este que vês; Vês outro que; Olha aquele e outras semelhantes. Notemos que cada pintura representa uma acção, de modo que cada explicação é uma breve narrativa, se esta palavra se pode aplicar a uma representação estendida no espaço e que é precedida de uma introdução no tipo de Vê-lo, cá vai. É claro que, referindo-se a quadros presentes (se bem que movimentados), o relator só pode usar os verbos no presente. Falando do célebre feito de Giraldo Sem Pavor:

Olha aquele que dece pela lança

Com as duas cabeças dos vigias».

In António José Saraiva., Estudos sobre a Arte d’Os Lusíadas, Gradiva, Publicações, 1996, ISBN 972-662-476-2.

Cortesia de GradivaP/JDACT

JDACT. António José Saraiva, Ensaio, Literatura, Camões, 

Soror Isabel (1673-1752). Jorge Duque Fernandes. «A segunda fonte é o livro impresso em 1757, cinco anos depois da morte da autora, a partir do manuscrito autógrafo, cujo título abreviado, na tese, é Vida da Serva de Deos….»

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Com a devida vénia ao Doutor Jorge Duque Fernandes

«A presente tese, elaborada para a obtenção do grau de Doutor em História, especialidade de História Moderna, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, tem por finalidade contribuir para o conhecimento das escritoras portuguesas anteriores ao ano de 1900, designadamente das que professaram em Ordens religiosas e escreveram sobre matérias espirituais. O seu primeiro objectivo é gizar a trajectória de vida de Soror Isabel do Menino Jesus (1673-1752), no século Isabel Fernandes, natural de Marvão, no Alto Alentejo, religiosa professa da Ordem de Santa Clara, no Convento de Santa Clara de Portalegre, falecida com fama de santidade e prestígio de mestra do espírito, depois de ali ter vivido quase cinquenta anos, tendo sido mestra da Ordem e abadessa. O seu segundo objectivo é analisar os textos da autora, os quais versam exclusivamente sobre ascética e mística: trinta e seis cartas, uma autobiografia, uma súplica e um tratado. A sua obra propõe um caminho espiritual segundo as escolas místicas franciscana e carmelita, pelas três vias do espírito (purgativa, iluminativa e unitiva) e por três noites escuras; e insiste na castidade, à qual chama ciência das virtudes. Realiza-se, pois, um estudo de caso, com enquadramento na ortodoxia católica, por ter sido neste campo que a autora escreveu, recebendo pareceres positivos da sua Ordem e da censura. A obra foi impressa em 1757, cinco anos depois da sua morte, organizada por frei Martinho de São José, seu confessor, com uma estampa-retrato da autora, aberta por Jean Baptiste Michel Le Bouteaux. O manuscrito autógrafo que lhe deu origem julgava-se perdido, após extravio pela época da extinção do convento, em 1834, mas foi encontrado à venda numa livraria alfarrabista, em Lisboa, em 2013, sendo então adquirido pela Câmara Municipal de Marvão. Este documento, do qual se apresenta transcrição, foi a primeira fonte da tese, à qual se juntaram muitas outras, manuscritas e impressas, concorrendo para recolocar a autora no conhecimento geral das escritoras portuguesas e também dos místicos de Portugal, dos quais pouco se sabe». In RESUMO

 

Introdução

A presente tese, elaborada especialmente para a obtenção do grau de Doutor em História, especialidade em História Moderna, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, tem por finalidade contribuir para o conhecimento das escritoras portuguesas anteriores ao ano de 1900, designadamente das que professaram em Ordens religiosas e escreveram sobre matérias espirituais. O seu primeiro objectivo é gizar a trajectória de Soror Isabel do Menino Jesus (1673-1752), no século chamada Isabel Fernandes, uma religiosa professa da Ordem de Santa Clara, no Convento de Santa Clara de Portalegre, que morreu com fama de santa e prestígio de mestra do espírito, depois de ali ter vivido quase cinquenta anos, sendo eleita para o ofício de mestra da Ordem e para o de abadessa.

Esta autora, hoje pouco conhecida, à data da sua morte deixou um manuscrito em vias de impressão, o que se deu já postumamente. O nosso segundo objectivo é analisar os textos de Soror Isabel, os quais versam exclusivamente sobre ascética e mística. Esta análise é qualitativa, tendo em conta um enquadramento na ortodoxia católica pós-tridentina, por ter sido dentro deste campo que a autora escreveu, recebendo pareceres positivos da sua Ordem religiosa e da censura. Trata-se de um estudo de caso numa dupla dimensão: quanto à sua vida, na sua Parte II (primeiro objectivo geral) e quanto à sua obra, na Parte I e na Parte III (segundo objectivo geral).

Centramo-nos em duas fontes principais: por um lado, no que Soror Isabel do Menino Jesus escreveu sobre si mesma e, em especial, sobre o seu domínio empírico da ciência ascética e mística, ou seja, os seus textos, a sua obra; e, por outro, no que sobre ela escreveram os seus contemporâneos, em especial aqueles que a conheceram ou observaram o seu comportamento, ou que consultaram testemunhas oculares. A nossa primeira fonte é, assim, o manuscrito autógrafo de Soror Isabel, intitulado postumamente Vida da Venerauel Madre Izabel do Menino Jezus. Falecida em 5 de Outubro de 1752, hoje conservado nos Paços do Concelho da Câmara Municipal de Marvão. Este manuscrito foi extraviado do cartório do convento antes do fim de 1858, vindo a ser por nós encontrado à venda já em 2013, numa livraria alfarrabista de Lisboa.

Trata-se efectivamente de um autógrafo, que, para além de outras características que o indiciam, apresenta a assinatura da autora por trinta e seis vezes, em diferentes páginas, sendo identificável com a assinatura de Soror Isabel do Menino Jesus em numerosos documentos daquele cartório. Pela sua relevância, transcrevemos integralmente o manuscrito e apresentamo-lo em anexo (Anexo I). Dele colhemos abundantes citações, ao longo da tese.

A segunda fonte é o livro impresso em 1757, cinco anos depois da morte da autora, a partir do manuscrito autógrafo, cujo título abreviado, na tese, é Vida da Serva de Deos…. Dissertamos sobre este impresso, mas, dele, nunca citamos os textos da autora, que, verificámos, correspondem aos do manuscrito, salvo na actualização da ortografia e na atribuição de pontuação, decisões do seu editor, o padre João Evangelista da Cruz Costa. Citamos, sim, os textos que os acompanham, nomeadamente a Advertencia, os pareceres da Ordem e dos censores; e, em especial, um Prologo, Progressos, Fim, e Prostestaçaõ, da autoria de frei Martinho de São José, que foi confessor da autora e era então o ministro provincial da Província do Algarves da Ordem de São Francisco, o qual interveio directamente na organização do livro, em vida da autora». In Jorge Duque Fernandes, Soror Isabel do Menino Jesus, Vida e Obra de uma Escritora Mística 1673-1752, Tese para obtenção do grau de Doutor em História, 2016, Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras, Fundação para a Ciência e Tecnologia, SFEH/BD/79496/2011.

Cortesia de FCT/CMM/BMP/JDACT

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quinta-feira, 20 de julho de 2023

Estudos sobre a Arte d’Os Lusíadas. António José Saraiva. «Quando a Fé, que no mundo se pubrica, Tomé vinha pregando, e já passara províncias mil do mundo, que ensinara»

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«Aqui a cidade foi, que se chamava

Meliapor, fermosa, grande e rica;

Os ídolos antigos adorava,

Como inda agora faz a gente inica.

Longe do mar naquele tempo estava,

Quando a Fé, que no mundo se pubrica,

Tomé vinha pregando, e já passara

Províncias mil do mundo, que ensinara.

Aqui a cidade foi: estamos no passado concluso. E é com este foi que concordam o se chamava, o adorava e o naquele tempo estava. Tétis está falando naquele tempo passado e usa o imperfeito segundo a regra normal. Mas já então a Fé se pubrica no mundo: entramos no presente. E é com este presente que concorda agora o imperfeito na forma durativa, com que começa a história de Tomé: Tomé vinha pregando. É verdade que o já passara e o ensinara supõem novamente o passado como forma determinante. Mas o presente denotado pelo pubrica e anunciado pelo vinha pregando emerge, afinal, como tempo definitivo do episódio:

Chegado aqui, pregando e junto dando

A doentes saúde, a mortos vida,

Acaso traz um dia o mar, vagando,

Um lenho de grandeza desmedida.

Tudo o que se segue a este traz é contado no presente, incluindo o desfecho, que é o assassinato do apóstolo:

Um dos maus, por fartar-se mais depressa,

Com crua lança o peito lhe atravessa.

O que este exemplo mostra talvez possa descrever-se como a emergência do presente. Por outras palavras, o passado serve só, neste caso, para sobrelevar o presente (= não-tempo); é um background. O que nos leva a um curioso resultado: o tempo, neste poema heróico, tem uma categoria inferior, acessória em relação ao não-tempo; é como a pedra não trabalhada sobre a qual avultam certas esculturas.

O advento de Afonso Henriques, a personagem que ocupa maior espaço na história de Portugal contada por Vasco da Gama (55 estrofes), é introduzido por uma breve narrativa dos seus antecedentes imediatos, em 7 estrofes. Estas têm os verbos todos, sem excepção, no perfeito; aquelas, todos, com poucas excepções, no presente.

Segundo esta hipótese, há n' Os Lusíadas, salva uma excepção notável de que adiante falaremos, uma hierarquia dos tempos verbais que é independente da categoria temporal. O tempo a que chamamos presente é reservado aos acontecimentos importantes; o tempo narrativo, aos que o Poeta considera acessórios, episódicos, de ligação, ou preparatórios do acontecimento em que se demora a vista.

Mas, além das acções visíveis aos homens, há, dentro do Poema, aquelas que são só visíveis aos deuses. Uma parte da história contida n 'Os Lusíados é posterior à viagem do Gama e só pode ser contada por personagens que têm o privilégio denver o futuro». In António José Saraiva., Estudos sobre a Arte d’Os Lusíadas, Gradiva, Publicações, 1996, ISBN 972-662-476-2.

Cortesia de GradivaP/JDACT

JDACT. António José Saraiva, Ensaio, Literatura, Camões