terça-feira, 31 de dezembro de 2024

Maria Teresa Horta  Meninas.. «A nossa avó, que viveu há séculos e escrevia poemas, vinha até aqui onde estamos assistir ao embarque e ao desembarque dos reis…»

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Efémera

«(…) Encostava a minha cara ao cetim da saia lisa do seu vestido fúchsia, e de mãos dadas olhávamos em silêncio o rio de um verde espesso manchado de azul-cobalto, serenamente a bordejar os primeiros degraus do cais, esverdeados de limos; degraus de pedra grossa desgastados pelos séculos, por onde as águas subiam nas marés altas e se estendiam devagar, envolventes, de manso rodeando, contornando as duas colunas que pareciam fitar o outro lado do Tejo. O sol de Agosto cegava-nos com a sua incandescente luz branca, fazendo brilhar o cabelo louro que ela usava em ondas a tocar os ombros frágeis, haste de tão delgada e dúctil a fazer lembrar as actrizes de cinema; com uma perversa languidez fatal de madressilva em flor ou de pedra preciosa rubra. Sempre que ali demorávamos mais tempo, expectantes mas amodorradas embora atentas, soltava a minha mão da sua, trepava para um dos bancos incrustados na amurada a separar-nos do rio e debruçava-me, a fim de sentir a vertigem, a tontura a tomar-me, sensação que pensava vir do fundo do espelho obscuro e frio daquelas águas, num chamamento impossível. E se ela estendia os dedos macios até ao meu braço que a manga de balão deixava a descoberto, a querer segurar-me, logo se distraía de novo; e eu mal sentia a frouxidão dos seus dedos, voltava-me a tentar fitar-lhe os olhos de anil, repletos de cintilação da tarde por onde, geniosa, a minha mãe escapava com a astúcia de mulher rebelde e deleitosa.

Efémera.

Por trás dela havia a largueza quase quadrada do Terreiro do Paço, com as suas arcadas abertas cor de mostarda clara e as ruínas do terramoto ao fundo, assim como o Arco da Rua Augusta encimado pela escultura de uma mulher de manto que eu sabia chamar-se Glória, a coroar o Génio e o Valor, tinham-me ensinado. No centro empedrado de pedra miúda, ficava o pedestal de mármore com a estátua do rei dom José I a cavalo, e isso já pertencia à História, embora na altura não o soubesse. Parecia-me por vezes escutar o barulho abafado de passos ágeis vindos de um outro tempo, o som de botinas e de sapatos frágeis, assim como um roçagar de saias de seda e saias de sombra, dos saiotes deslizando uns nos outros. Mais impreciso ainda era o sussurro das rendas e dos cetins, saias enfunadas em ternas transparências…, shantungs e musselinas e tafetás, mas sobretudo de sedas matizadas e de coletes bordados a ponto de crivo, abainhados de prata.

A nossa avó, que viveu há séculos e escrevia poemas, vinha até aqui onde estamos assistir ao embarque e ao desembarque dos reis, contava minha mãe como se inventasse. E eu quedava-me a imaginar essa avó descoberta a partir de uma gravura que encontrara num livro encadernado, há muito esquecido sobre a mesa baixa da nossa sala de estar. Olhar inteligente e arguto num rosto belo de traços delicados, os lábios de veludo toldados pelo ligeiríssimo sorriso. Era deste modo que a reprodução em papel brilhante nos mostrava Leonor de Almeida. Olhar determinado de luz, iludindo-se.

Chegava a sonhar com ela enquanto menina, antes de ter oito anos e entrar com a mãe e a irmã para o convento de São Félix, por ordem de Sebastião José de Carvalho Melo, e antes também de fazer poesia. Distinguia-a debruçada na amurada onde eu tantas vezes já estivera com o pensamento nela, desejando descortinar tudo o que dali ela abarcara a navegar no Tejo: as faluas, as gabarras de vela de dois mastros, as barcaças… A passarem ao largo, na sua mansa faina». In Maria Teresa Horta, Meninas, Publicações dom Quixote, 2014, ISBN 978-972-205-611-3.

Cortesia de PdQuixote/JDACT

JDACT, Maria Teresa Horta, Literatura,

As Luzes de Leonor. Maria Teresa Horta. «… os nervos quebradiços da marquesa de Alorna, com a sua fragilidade doentia, tal como o estouvamento mimado da filha mais nova».

 

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1758-1768

«Entraram noite alta, a contragosto, contritas, lívidas. As três amparando-se umas às outras, o bistre das olheiras a macerar-lhes as faces ainda molhadas pelas lágrimas, o rapazinho, que nem devia ter vindo, agarrado com susto ao vestido da mãe. Só a menina mais velha me procurou os olhos, a querer prendê-los nos seus numa teima assombrada, jeito de quem é brava de coração e carácter. A interrogar, a querer entender e a duvidar ainda. Oito anos obstinados, ásperos e esquivos, almiscarado odor a bergamota toldado pelo perfume de água de rosas lívidas, nela havia já uma certa altivez orgulhosa e aristocrática; mais firme e determinada do que a mãe e a irmã, a avaliar-me a mim, prioresa do convento de São Félix em Chelas, onde não se sabe por quanto tempo irão ficar reclusas. Como se ela pudesse entender ou adivinhar que só as recebo porque a isso me obriga a obediência devida ao vigário geral do Patriarcado, o arcebispo de Lacedemónia, a cumprir por sua vez ordens do ministro de Estado de El-Rei José I. Não me cabe reparar no mundo fora da casa do Senhor, e menos ainda ter opinião sobre os assuntos do Reino, mas a partir de hoje temo bastante pela instabilidade do nosso convento, devido à revolta que elas possam arrastar para dentro destas paredes sagradas, com os seus destinos desordenados. Temo sobretudo a rebeldia de Leonor e a maturidade invulgar que apercebi no seu impenetrável olhar de veludo incerto, embora também me preocupe a presença do menino, que terá rapidamente de abandonar o convento, e os nervos quebradiços da marquesa de Alorna, com a sua fragilidade doentia, tal como o estouvamento mimado da filha mais nova. Vamos ter, por certo, uma convivência difícil.

O arcebispo de Lacedemónia comparece no dia seguinte no convento de Chelas, a fim de comunicar à madre superiora as directrizes do conde de Oeiras no que diz respeito à estada no mosteiro da marquesa de Alorna, dona Leonor Lorena, e à das suas filhas. O menino terá de sair em breve, mas não o comunica à prelada. Preocupada com a visita, de que não estava à espera, esta consegue suster no peito a indignação nela desencadeada pela presença das três estranhas chegadas noite alta, na véspera, a fim de cumprirem castigo de reclusão, e embora duas das intrusas sejam crianças isso não lhe importa, pois em todas corre nas veias o sangue condenado dos Távora. Continuando o arcebispo num silêncio pesado, olhos pequenos e astutos tentando captar os dela, esquivos como se temesse revelar o que não deve, a prelada acaba por tomar a palavra, mãos nervosas a subirem-lhe ao rosto longo e a sublinharem as palavras das quais, de início, tenta ainda encobrir o tom desabrido…

Vossa Eminência vai perdoar-me a impertinência, mas vejo-me na necessidade absoluta de Vos comunicar a grave preocupação que de imediato me invadiu, ao constatar que com a marquesa de Alorna vinham não só as filhas mas também um filho! Ora, num convento de religiosas, Vossa Eminência sabe não se poder criar um menino, vê-lo crescer todos os dias a ficar mais homem… Já me basta a pesada tarefa de gerir este convento, a tentar harmonizar freiras e noviças, pensionistas e recolhidas, senhor arcebispo de Lacedemónia, mais a mais vendo-me agora obrigada, no cumprimento da ordem do senhor ministro de Estado, a acolher com generosidade nesta casa do Senhor membros de uma família banida por Sua Majestade, e isso já me basta senhor arcebispo. Estranhando não ter sido ainda interrompida, a madre abadessa, que ao deixar-se embalar pelo discurso se levantara, volta-se para o prelado, que continua a fitá-la num pesado mutismo, com um meio sorriso sarcástico nos lábios finos.

Tempo depois, tal como era esperado pela mãe e pelas irmãs, apesar de não o confessarem umas às outras, o desembargador Eusébio Tavares volta a Chelas acompanhado pela tropa, a fim de levar Pedro de volta à casa da Boa Morte, onde continuam os criados e alguns parentes afastados. Ignorando ter sido Sebastião José quem dera ordem no sentido de o menino não ser fechado num convento de religiosas, Leonor Lorena domina-se, tentando serenar-se, a conformar-se já com a solução encontrada. Pede apenas uns instantes sozinha com o filho, que sente a tremer de susto, mão gelada apertada na sua. E quando voltam a sair do quarto, o menino vem muito branco e calado, mas sem lágrimas no rosto crispado. Filho corajoso!, pensa comovida, já a arder em febre». In Maria Teresa Horta, As Luzes de Leonor, Publicações dom Quixote, 2011, Prémio D. Dinis I, ISBN 978-972-204-733-3.

Cortesia de PdQuixote/JDACT

segunda-feira, 30 de dezembro de 2024

A Esmeralda Partida. Fernando Campos. «… contava a minha aia e eu trazia os ouvidos cheios de histórias maravilhosas: que é dele o cavaleiro louro de olhos azuis?

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O Rei de Marfim

«(…) Para onde mais podia ela ir, senão ali ficar na cela em que recolheu o último bafo da mãe?..., tudo aí começou. Tânger foi o descalabro de todos nós..., do cativeiro do infante, da morte prematura do rei na menoridade do filho, do rebentar dessa semente funesta da malquerença contra o regente meu pai..., porque não se cansava a tia Filipa de falar nisso?, ainda lhe doía a morte do pai, agora avivada pela da mãe?, raiva, ódio, desejo de vingança?..., que outra coisa havias tu e tua irmã de fazer senão afagar-lhe o ombro, abraçá-la, tomar-lhe as mãos, a consolá-la à tia Filipa, irmã de vossa mãe?..., nunca te haveria de esquecer o olhar dela molhado a erguer-se para ti, para Joana: devereis saber, meus sobrinhos..., e as palavras se lhe mergulhavam atrás a revolver no poço do tempo... bom monteiro e caçador, não há que ver, como todos os varões dessa família ..., eu sei, eu sei, minha senhora tia, intervinhas tu. Meu bisavô João até escreveu aquele livro ..., sim, e nosso avô Duarte, lembrava Joana, compôs também um outro ..., assim é. E este nosso avô Pedro ...

É isso, sim, meus sobrinhos, mas particularmente do que vosso avô Pedro mais gostava era de ocupar suas horas..., com que minúcia repartia cada tarefa, cada obrigação pelas horas do dia!..., deixa-me ver se adivinho, deixa ..., diz, meu sobrinho. Do que ele mais gostava era de ocupar suas horas metido na livraria ..., a estudar ..., completava tua irmã. E a verter do latim o livro dos ofícios de Marco Túlio Cicerão..., costumava dizer que cada livro era uma janela do universo, mas acrescentava pensativo: Mais se aprende dos costumes a índole dos homens do que pela leitura de grossos volumes, homem sábio, meu pai! Arrumado nas ideias e na acção, o cuidado que punha em mandar abrir valas para enxugar os pântanos do Mondego..., bom administrador de sua casa como dos negócios da república, conhecedor como poucos da arte da guerra, perito do regimento da corte..., que saudades as minhas! Quando ele aparecia à porta da câmara cansado do estudo, meus meninos, desembaraçava-me eu do colo da ama e corria a estender-lhe os braços para o alto, ele avançava no seu andar manso, dobrava-se, içava-me a beijar-me..., a mim, enquanto sentia aquela barba ruiva arranhar-me a cara, semelhava-me estar a ver do cimo da torre de um castelo a sala e as pessoas lá em baixo muito pequenas..., depois sentava-se..., quantas vezes o fazia, com os filhos em roda e a minha mãe ao lado, a recordar as suas viagens por essa Europa fora..., de seu jeito, bem diferente, mas contava a minha aia e eu trazia os ouvidos cheios de histórias maravilhosas: que é dele o cavaleiro louro de olhos azuis?, lá vai cavalgando em seu corcel de prata e de arreios de ouro, seguem-no atrás os doze companheiros, Cristo mai-los discípulos, como fantasmas caminham sobre as montadas tarrenego mafarrico, não parecem desta vida, bestas do apocalis a correr campos de turcos, ladeiam já as margens do termodonte no país das amazonas, atravessam desertos em cima de dromedários e chegam à Noruega onde os dias não luzem mais do que quatro horas, passam Babilónia, a província dos centauros, a terra dos alarves em que os filhos são sepultura dos pais, nas serranias da arménia vêem a arca de noé, por damasco descem à Terra Santa, ao Egipto, onde assistem ao suplício de um mouro que por ter dado uma bofetada num peregrino é empalado numa vara afiada que lhe saía pela boca..., visitam a região dos gigantes, dos homens com cabeça de cão, dos pigmeus que têm guerra com as aves... em Meca admiram, suspenso no ar por seis pedras imãs, o moimento de mafoma... e entram no paraíso terreal, que é banhado por quatro rios: do Tigre, que corre por território dos assírios, saem ramos de ciprestes e de oliveiras; das ondas do Eufrates erguem-se palmeirais agitados pelo vento; do Géon, que circunda o chão da Etiópia, surgem homens cor de bronze; do Físon, que rodeia a região de Hevilath, onde nasce o ouro e se encontra o Bdélio e a Cornalina, esvoaçam papagaios coloridos em seus ninhos pelas águas... » In Fernando Campos, A Esmeralda Partida, 1995, Difel, Lisboa, 2008, ISBN 978-972-290-330-1.

Cortesia de Difel/JDACT

D. João II, JDACT, Literatura, Saber, Fernando Campos,