«Havia dias em que, mais do que acreditar que estava, na verdade estava em 1947, ou em 1914, ou em 1935, ou em 1960, ou em 1926, ou em qualquer um dos anos da sua longuíssima vida. Às vezes era possível intuir se Will se encontrava instalado num ano mau mediante uma leve expressão de temor (era um ser demasiado puro para que nele houvesse espaço para a preocupação, pois carecia absolutamente da visão de futuro sempre associada a tal sentimento) que, no entanto, nunca chegava a assombrar o seu olhar confiante e ufano.
Podíamos suspeitar que uma manhã
de 1940 estava para ele dominada pelo medo dos bombardeamentos da noite
anterior ou da seguinte, e que uma manhã de 1916 o podia encontrar um pouco abatido
com as más notícias procedentes da ofensiva do Somme, e que uma de 1930 o tinha
acordado sem um tostão no bolso e com os olhos cautelosos e tímidos de quem tem
de pedir emprestado e ainda não decidiu a quem.
Noutros
dias, o ligeiríssimo apagamento do seu imenso sorriso ou do brilho do seu olhar
tão afectuoso era de todo indecifrável, nem sequer objecto de fabulação, porque,
sem dúvida, devia-se a pesares e sensaborias da sua vida pessoal, que nunca
interessou a um professor ou aluno. Nessa viagem contínua pela sua existência,
quase tudo era insondável para os demais (tal como os retratos de séculos
passados ou uma fotografia tirada anteontem). Como podíamos saber em que
aflitiva jornada dos seus inúmeros dias se encontrava Will quando o víamos cumprimentar
apenas com um meio sorriso, em vez Marías, Literatura, Espanha,
Como saber que troço melancólico
do seu infindável trajecto estava a percorrer quando não erguia a mão naquele
seu gesto infantil enquanto dava os bons-dias? Aquela mão verticalmente
erguida, que nos fazia ter a convicção de que naquela cidade inóspita alguém
ficava realmente alegre por nos ver, embora esse alguém não soubesse quem éramos
ou, melhor dizendo, nos visse todas as manhãs como alguém diferente do dia
anterior. Só por uma vez soube, graças a Cromer-Blake, em que momento exacto
daquela sua vida sem sobressaltos, passada durante tantas horas atrás dos
vidros da sua cabina, se encontrava Will. Cromer-Blake esperou por mim à porta do
edifício e avisou-me: Diz algo ao Will, umas palavras de conforto.
Aparentemente, hoje está a viver
no dia em que lhe morreu a mulher, em 1962, e ficaria muito magoado se um de
nós não se apercebesse do sucedido ao entrar. Está muito triste, mas o seu bom
humor natural permite-lhe usufruir do seu protagonismo de hoje apenas na medida
certa para não perder de todo o sorriso. De modo que, até certo ponto, também
está satisfeitíssimo. E, já sem olhar para mim,
fazer as suas deslocações sempre a correr para darem a impressão de um
perpétuo sufoco e ocupação extrema nos intervalos entre uma e outra aula, as
quais, no entanto, decorreram ou teriam de decorrer no mais absoluto sossego e
despreocupação, como parte que eram do estar e não do fazer e nem sequer do
fingir. Era o caso de Cromer-Blake e também do Inquisidor, também conhecido por Carniceiro ou Estripador,
e cujo nome verdadeiro era Alec Dewar.» In Javier Marías, Todas as Almas, Editora
Martins Fontes, 1998, Alfaguara, 2019, ISBN 978-989-665-914-4.
Cortesia de EMFontes/EAlfaguara/JDACT
JDACT, Javier Marías, Literatura, Espanha,