quinta-feira, 9 de janeiro de 2025

Aníbal Belo (1945-2001). Carta de Marvão. «… aliviava-se, com prazer, a falar de teatro, de tipografias, dos presencistas, e muito especialmente de Francisco Bugalho, e de José Régio…»

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NOTA:: Mário Rainho faleceu no dia 2 de Janeiro de 2025, com 97 anos

«Daquele aconchego agasalhante, dado a peregrino de longe que vinha pedir pousada, tomei boa nota para a vida, evocando, da memória, os versos de ouro de Pitágoras, quando impõem o dever de honrar os pais e de agradecer a hospitalidade do estalajadeiro. Agora, em triunvirato, o Garcia, eu e o Mário Rainho continuamos a nova rota traçada por via de destinos e de circunstâncias, enleados de redes de sentimentos e de olhares, que o andar dos passos mostraram ser comuns.

O Mário Rainho aproveitou para me levar às Casas Amarelas, que mais não eram do que a sede do poder judicial, onde também estava instalada a Conservatória Registral, que ele próprio personalizava. De notável espírito de observação, era ali, por dentro daquelas janelas de guilhotina, o seu terreiro profissional, onde a sua vocação se professava, à lente, a analisar os documentos e cartas públicas do notário de Marvão, que, todas as semanas, desapiedadamente, lhe deixava, aos montes, fruto da sua exaração semanal, com letra miudinha, o que o obrigava a levantar, obliquamente, os óculos, para enxergar as certezas daquelas verdades declaradas.

Haveria eu de lembrar por muitos anos a sua assinatura, com uma grande cauda sobreposta e alongada, quase elíptica, a abranger o seu nome todo, que, com o andar dos anos, de elisão em elisão, se ia sintetizando, desnudando-se dos arredondamentos originários. No intervalo dos seus tiques registrais, aliviava-se, com prazer, a falar de teatro, de tipografias, dos presencistas, e muito especialmente de Francisco Bugalho e do irmão e de José Régio e das suas Histórias de Mulheres, entretendo-se na discussão da lenda de misoginias, que acerca dele se cultivavam. Os dias futuros haviam de me mostrar a sua enorme e talentosa capacidade de interpretar papéis, de difícil tradução, na arte de representar.

Era ininterrupta a sua constância, no apelo aos elementos da sua equipa de teatro, que dirigia, exigindo-lhes presenças, que só a luta contra o cómodo da televisão vencia, deixando-as, livres, para o ensaio ou para a declamação. A militância por todos os valores da sua terra faziam dele um centro de atenções, que testemunhava a circum-navegação de todos os acontecimentos colectivos na Vila. O Mário Rainho não era qualquer pessoa subalterna a valores do espírito, sempre rente ao saber, sempre ao pé do sortilégio da beleza incandeante, que o motivara a ser quem é, formatado pelas circunstâncias da vida, marcada que foi, logo na infância, pelas letras que apreendera a colocar na tipografia, umas ao lado das outras, o que lhe propiciou o amanhecente gosto pela leitura. Era um caso típico de autodidaxia, no qual conseguiu forjar uma personalidade de vigores e robustecimentos, donde emergem virtudes e valências, que sobrepairam à vulgar mediania, onde, latentes, as mediocracias medram.

O Mário Rainho, agradecido ao acaso por aquele tão fortuito encontro, contente de mim, ao lado dele e do Garcia, ao seu lado, ia ilustrando a Vila dos seus varões ilustres, do passado e do presente, quando me sugeriu, por ali estarmos perto, dar uma saltada à Câmara da vila, onde o Presidente Carolino teria, com certeza, prazer em conhecer-me, e com quem eu gostaria de falar. Que sim, que era boa ideia, e lá fomos os três, ao mesmo tempo, ao mesmo lado, como que a gradar as ruas e os acontecimentos que se tinham rebolado sobre elas.

Seguimos pelas Carreiras de Cima e fomos lá à frente, onde parámos, para entrar, subindo, uma grande escadaria, que se atingia, depois de ultrapassado um precioso portão de ferro forjado, como que a dizer do subido e superior ar daquela casa municipal, domicílio das respostas às solicitações dos cidadãos da vila e do seu termo. O Presidente apareceu, o Mário Rainho disse quem eu era, e com saudações contagiantes nos cumprimentámos, com delicadezas mútuas, que o tempo haveria de decretar duradoiras». In Aníbal Belo, Carta de Marvão, Edições Universidade Fernando Pessoa, 2001, ISBN-972-8184-66-2.

Cortesia da U.F. Pessoa/JDACT

Castelo de Vide, Mário Rainho, Aníbal Belo, Marvão, JDACT, 

segunda-feira, 6 de janeiro de 2025

Aníbal Belo (1945-2001). Carta de Marvão. «E a mim, narrador do futuro, testemunha credenciada de consensos, aprouve-me a função de assistir àquele acontecido encontro, forrado, para aquém, da espessura dos dias».


NOTA:: Mário Rainho faleceu no dia 2 de Janeiro de 2025, com 97 anos

«Engenheiro civil, caiu-lhe, no trabalho da vida, a tarefa de ir dirigir a construção do caminho-de-ferro do ramal de Cáceres. E, nessa qualidade, tinha que retalhar os tapadões, as tapadas, as hortas e os currais, que a estrada de ferro tinha naturalmente de dividir, cabendo-lhe o odioso de ferir, com golpes de espada, as heranças avoengas ou as deixas testamentárias de muitas gerações e os códigos de honra, que o estatuto de posse foi criando no deambular dos séculos. De fina sensibilidade, o engenheiro de tudo ia tomando conta e nota, inventariando emoções e retratos de personagens, com que criou a comédia de costumes imortalizadora.

O Mário Rainho alongava-se em biografias e hagiografias, em dados contornos, enquanto eu, de espírito cada vez mais giratório, me espairecia na lonjura dos acontecimentos, para trás e para a frente dos carris do tempo, ora evocando´Camilo Castelo Branco, que dizia que até os pardais se assustavam com aquele touro negro de ferro, a galgar as travessas, ora colocando o engenheiro Horta, na dianteira, a corrigir erros e cálculos do fidalgo João na estação de Caminho de Ferro da Beirã».

No dissêncio dos dias, consegui pô-los a conversar acerca de cálculos, topografias e texturas de construção, conseguindo, com inegável sucesso, que o tempo se encurtasse para ser mais legível a história e mais fácil a construção dos amanhãs. Bom conhecedor do cadastro de Marvão, o Horta agradeceu a João da Câmara os seus ensinamentos, este louvou-lhe as simpatias e as referências da memória.

E a mim, narrador do futuro, testemunha credenciada de consensos, aprouve-me a função de assistir àquele acontecido encontro, forrado, para aquém, da espessura dos dias. O meu ajudante, com a fraqueza das forças a afadigarem as suas energias, foi-me levando para o jardim do Parque, todo recheado de árvores frondosas, de cujos galhos os passarinhos faziam coreto, para aí entoarem seus trinados de alegria. Era um jardim cuidado e frequentado por gente, que dele fazia uso vivo. Pessoas sentadas nos bancos, com ar despreocupado e livre, conversavam amenamente com figurantes que passavam, e a quem davam dedos grandes de conversa, para terapia da monotonia ou da solidão da mesma mesmice dos dias.

E, enquanto ele me continuava a falar das rivalidades com Marvão, eu, a boiar em mim, ia estendendo o olhar gostoso para aquela natureza, ali trabalhada e ordenada, quando, ao subir a ladeira, nas suas calmas, me apontou para a estalagem, que se esquinava no encontro de duas ruas. Era a Casa Parque, de construção de meados do século, denotando qualidade bastante para compensar os meus depauperados aposentos, já com descrição acima». In Aníbal Belo, Carta de Marvão, Edições Universidade Fernando Pessoa, 2001, ISBN-972-8184-66-2.

Cortesia da U.F. Pessoa/JDACT

 Castelo de Vide, Mário Rainho, JDACT, O Saber,

Carta de Marvão. Aníbal Belo (1945-2001) «… esquina volvida, aparece o Mário Rainho, director de um grupo de teatro, um homem com quem havia de privar alguns anos, com um notável espírito de observação, supremamente evidenciado pelo anexim de observa, com que os homens da terra o marcaram»

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NOTA:: Mário Rainho faleceu no dia 2 de Janeiro de 2025, com 97 anos

«O filósofo veio à janela, olhou, de dentro para fora, e de cima para baixo, e, ao ver o frade branco, insultou-o, com muitos ralhos, com imprecações intermináveis, com maldições eternas .E, em altos berros e espadaladas várias, aparece ali naquela cena, saído de trás do reposteiro do tempo, esparvoado, o franciscano inglês Roger Bacon, a tomar partido pelo dono da casa, a quem tutorava naquele trabalho de ópticas, por sua conta desde o século XII, que não era mais que negócio de óculos e lentes de contacto...

E palavra puxa palavra, doutrina puxa doutrina, frade não deve a frade, vamos à bulha e todos ao monte, e o dominicano com o seu manto branco, muito mais sujo da refrega que o hábito castanho do franciscano. Spinoza, o judeu filósofo, agradecido, ia virar as costas para continuar a lapidar, quando, de repente e ofegante, chega o Richard Zimler do novo mundo, para fazer a acta do ali acontecido, trazendo como testemunha cientificadora o Alexandre Quintanilha, talvez para escrever agora sobre o último cabalista de Castelo de Vide, ensinando ao filósofo qual o melhor trajecto para a sinagoga portuguesa de Amesterdão.

João III, o Piedoso, apiedou-se de si e, sentado no banco da Fonte, que era o suporte de cântaros e bilhas de água ou o poiso das apeias das azémolas, com a cara escondida entre as mãos, para não ver o que deixou para o futuro, soluçava com gritos de permeio, que se ouviam a séculos de distância.

O Garcia, impressionado com aquele espectáculo dramático, deitou-me o olhar com tons complacentes, a sustentar desculpas por aquela ocorrência, rogando-me, por instantes, compreensão, e foi-me afastando daquele território, daquela cena, que mais parecia teatro vicentino do que momento azíago de declamação ocasional de papéis, previamente estudados, nas intertelas do devir dos acontecimentos.

Falava-me ele de teatro, falava eu de tragédia, de fingimentos na arte de representar na vida e das máscaras gregas de Epidauro, quando, esquina volvida, aparece o Mário Rainho, director de um grupo de teatro, um homem com quem havia de privar alguns anos, com um notável espírito de observação, supremamente evidenciado pelo anexim de observa, com que os homens da terra o marcaram.

Era uma pessoa recheada de singularidades, de alto e belo espírito, que também se embevecia de belezas. De entretém, de oportunidade, ao ver-me ser solidário nesses afazeres da alma, com delicadeza nos conduziu para uma outra rua e, postando-se em frente a uma casa, de altos e baixos, disse-me que ali tinha vivido o grande dramaturgo João da Câmara, autor da comédia OS VELHOS, cuja génese tinha, como terreiro, a freguesia de Santo António das Areias e cuja acção se essenciava na reacção da população daquele povo à chegado do comboio». In Aníbal Belo, Carta de Marvão, Edições Universidade Fernando Pessoa, 2001, ISBN-972-8184-66-2.

Cortesia da U.F. Pessoa/JDACT

 Castelo de Vide, Mário Rainho, Aníbal Belo, JDACT, 

terça-feira, 31 de dezembro de 2024

Maria Teresa Horta  Meninas.. «A nossa avó, que viveu há séculos e escrevia poemas, vinha até aqui onde estamos assistir ao embarque e ao desembarque dos reis…»

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Efémera

«(…) Encostava a minha cara ao cetim da saia lisa do seu vestido fúchsia, e de mãos dadas olhávamos em silêncio o rio de um verde espesso manchado de azul-cobalto, serenamente a bordejar os primeiros degraus do cais, esverdeados de limos; degraus de pedra grossa desgastados pelos séculos, por onde as águas subiam nas marés altas e se estendiam devagar, envolventes, de manso rodeando, contornando as duas colunas que pareciam fitar o outro lado do Tejo. O sol de Agosto cegava-nos com a sua incandescente luz branca, fazendo brilhar o cabelo louro que ela usava em ondas a tocar os ombros frágeis, haste de tão delgada e dúctil a fazer lembrar as actrizes de cinema; com uma perversa languidez fatal de madressilva em flor ou de pedra preciosa rubra. Sempre que ali demorávamos mais tempo, expectantes mas amodorradas embora atentas, soltava a minha mão da sua, trepava para um dos bancos incrustados na amurada a separar-nos do rio e debruçava-me, a fim de sentir a vertigem, a tontura a tomar-me, sensação que pensava vir do fundo do espelho obscuro e frio daquelas águas, num chamamento impossível. E se ela estendia os dedos macios até ao meu braço que a manga de balão deixava a descoberto, a querer segurar-me, logo se distraía de novo; e eu mal sentia a frouxidão dos seus dedos, voltava-me a tentar fitar-lhe os olhos de anil, repletos de cintilação da tarde por onde, geniosa, a minha mãe escapava com a astúcia de mulher rebelde e deleitosa.

Efémera.

Por trás dela havia a largueza quase quadrada do Terreiro do Paço, com as suas arcadas abertas cor de mostarda clara e as ruínas do terramoto ao fundo, assim como o Arco da Rua Augusta encimado pela escultura de uma mulher de manto que eu sabia chamar-se Glória, a coroar o Génio e o Valor, tinham-me ensinado. No centro empedrado de pedra miúda, ficava o pedestal de mármore com a estátua do rei dom José I a cavalo, e isso já pertencia à História, embora na altura não o soubesse. Parecia-me por vezes escutar o barulho abafado de passos ágeis vindos de um outro tempo, o som de botinas e de sapatos frágeis, assim como um roçagar de saias de seda e saias de sombra, dos saiotes deslizando uns nos outros. Mais impreciso ainda era o sussurro das rendas e dos cetins, saias enfunadas em ternas transparências…, shantungs e musselinas e tafetás, mas sobretudo de sedas matizadas e de coletes bordados a ponto de crivo, abainhados de prata.

A nossa avó, que viveu há séculos e escrevia poemas, vinha até aqui onde estamos assistir ao embarque e ao desembarque dos reis, contava minha mãe como se inventasse. E eu quedava-me a imaginar essa avó descoberta a partir de uma gravura que encontrara num livro encadernado, há muito esquecido sobre a mesa baixa da nossa sala de estar. Olhar inteligente e arguto num rosto belo de traços delicados, os lábios de veludo toldados pelo ligeiríssimo sorriso. Era deste modo que a reprodução em papel brilhante nos mostrava Leonor de Almeida. Olhar determinado de luz, iludindo-se.

Chegava a sonhar com ela enquanto menina, antes de ter oito anos e entrar com a mãe e a irmã para o convento de São Félix, por ordem de Sebastião José de Carvalho Melo, e antes também de fazer poesia. Distinguia-a debruçada na amurada onde eu tantas vezes já estivera com o pensamento nela, desejando descortinar tudo o que dali ela abarcara a navegar no Tejo: as faluas, as gabarras de vela de dois mastros, as barcaças… A passarem ao largo, na sua mansa faina». In Maria Teresa Horta, Meninas, Publicações dom Quixote, 2014, ISBN 978-972-205-611-3.

Cortesia de PdQuixote/JDACT

JDACT, Maria Teresa Horta, Literatura,

As Luzes de Leonor. Maria Teresa Horta. «… os nervos quebradiços da marquesa de Alorna, com a sua fragilidade doentia, tal como o estouvamento mimado da filha mais nova».

 

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1758-1768

«Entraram noite alta, a contragosto, contritas, lívidas. As três amparando-se umas às outras, o bistre das olheiras a macerar-lhes as faces ainda molhadas pelas lágrimas, o rapazinho, que nem devia ter vindo, agarrado com susto ao vestido da mãe. Só a menina mais velha me procurou os olhos, a querer prendê-los nos seus numa teima assombrada, jeito de quem é brava de coração e carácter. A interrogar, a querer entender e a duvidar ainda. Oito anos obstinados, ásperos e esquivos, almiscarado odor a bergamota toldado pelo perfume de água de rosas lívidas, nela havia já uma certa altivez orgulhosa e aristocrática; mais firme e determinada do que a mãe e a irmã, a avaliar-me a mim, prioresa do convento de São Félix em Chelas, onde não se sabe por quanto tempo irão ficar reclusas. Como se ela pudesse entender ou adivinhar que só as recebo porque a isso me obriga a obediência devida ao vigário geral do Patriarcado, o arcebispo de Lacedemónia, a cumprir por sua vez ordens do ministro de Estado de El-Rei José I. Não me cabe reparar no mundo fora da casa do Senhor, e menos ainda ter opinião sobre os assuntos do Reino, mas a partir de hoje temo bastante pela instabilidade do nosso convento, devido à revolta que elas possam arrastar para dentro destas paredes sagradas, com os seus destinos desordenados. Temo sobretudo a rebeldia de Leonor e a maturidade invulgar que apercebi no seu impenetrável olhar de veludo incerto, embora também me preocupe a presença do menino, que terá rapidamente de abandonar o convento, e os nervos quebradiços da marquesa de Alorna, com a sua fragilidade doentia, tal como o estouvamento mimado da filha mais nova. Vamos ter, por certo, uma convivência difícil.

O arcebispo de Lacedemónia comparece no dia seguinte no convento de Chelas, a fim de comunicar à madre superiora as directrizes do conde de Oeiras no que diz respeito à estada no mosteiro da marquesa de Alorna, dona Leonor Lorena, e à das suas filhas. O menino terá de sair em breve, mas não o comunica à prelada. Preocupada com a visita, de que não estava à espera, esta consegue suster no peito a indignação nela desencadeada pela presença das três estranhas chegadas noite alta, na véspera, a fim de cumprirem castigo de reclusão, e embora duas das intrusas sejam crianças isso não lhe importa, pois em todas corre nas veias o sangue condenado dos Távora. Continuando o arcebispo num silêncio pesado, olhos pequenos e astutos tentando captar os dela, esquivos como se temesse revelar o que não deve, a prelada acaba por tomar a palavra, mãos nervosas a subirem-lhe ao rosto longo e a sublinharem as palavras das quais, de início, tenta ainda encobrir o tom desabrido…

Vossa Eminência vai perdoar-me a impertinência, mas vejo-me na necessidade absoluta de Vos comunicar a grave preocupação que de imediato me invadiu, ao constatar que com a marquesa de Alorna vinham não só as filhas mas também um filho! Ora, num convento de religiosas, Vossa Eminência sabe não se poder criar um menino, vê-lo crescer todos os dias a ficar mais homem… Já me basta a pesada tarefa de gerir este convento, a tentar harmonizar freiras e noviças, pensionistas e recolhidas, senhor arcebispo de Lacedemónia, mais a mais vendo-me agora obrigada, no cumprimento da ordem do senhor ministro de Estado, a acolher com generosidade nesta casa do Senhor membros de uma família banida por Sua Majestade, e isso já me basta senhor arcebispo. Estranhando não ter sido ainda interrompida, a madre abadessa, que ao deixar-se embalar pelo discurso se levantara, volta-se para o prelado, que continua a fitá-la num pesado mutismo, com um meio sorriso sarcástico nos lábios finos.

Tempo depois, tal como era esperado pela mãe e pelas irmãs, apesar de não o confessarem umas às outras, o desembargador Eusébio Tavares volta a Chelas acompanhado pela tropa, a fim de levar Pedro de volta à casa da Boa Morte, onde continuam os criados e alguns parentes afastados. Ignorando ter sido Sebastião José quem dera ordem no sentido de o menino não ser fechado num convento de religiosas, Leonor Lorena domina-se, tentando serenar-se, a conformar-se já com a solução encontrada. Pede apenas uns instantes sozinha com o filho, que sente a tremer de susto, mão gelada apertada na sua. E quando voltam a sair do quarto, o menino vem muito branco e calado, mas sem lágrimas no rosto crispado. Filho corajoso!, pensa comovida, já a arder em febre». In Maria Teresa Horta, As Luzes de Leonor, Publicações dom Quixote, 2011, Prémio D. Dinis I, ISBN 978-972-204-733-3.

Cortesia de PdQuixote/JDACT

segunda-feira, 30 de dezembro de 2024

A Esmeralda Partida. Fernando Campos. «… contava a minha aia e eu trazia os ouvidos cheios de histórias maravilhosas: que é dele o cavaleiro louro de olhos azuis?

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O Rei de Marfim

«(…) Para onde mais podia ela ir, senão ali ficar na cela em que recolheu o último bafo da mãe?..., tudo aí começou. Tânger foi o descalabro de todos nós..., do cativeiro do infante, da morte prematura do rei na menoridade do filho, do rebentar dessa semente funesta da malquerença contra o regente meu pai..., porque não se cansava a tia Filipa de falar nisso?, ainda lhe doía a morte do pai, agora avivada pela da mãe?, raiva, ódio, desejo de vingança?..., que outra coisa havias tu e tua irmã de fazer senão afagar-lhe o ombro, abraçá-la, tomar-lhe as mãos, a consolá-la à tia Filipa, irmã de vossa mãe?..., nunca te haveria de esquecer o olhar dela molhado a erguer-se para ti, para Joana: devereis saber, meus sobrinhos..., e as palavras se lhe mergulhavam atrás a revolver no poço do tempo... bom monteiro e caçador, não há que ver, como todos os varões dessa família ..., eu sei, eu sei, minha senhora tia, intervinhas tu. Meu bisavô João até escreveu aquele livro ..., sim, e nosso avô Duarte, lembrava Joana, compôs também um outro ..., assim é. E este nosso avô Pedro ...

É isso, sim, meus sobrinhos, mas particularmente do que vosso avô Pedro mais gostava era de ocupar suas horas..., com que minúcia repartia cada tarefa, cada obrigação pelas horas do dia!..., deixa-me ver se adivinho, deixa ..., diz, meu sobrinho. Do que ele mais gostava era de ocupar suas horas metido na livraria ..., a estudar ..., completava tua irmã. E a verter do latim o livro dos ofícios de Marco Túlio Cicerão..., costumava dizer que cada livro era uma janela do universo, mas acrescentava pensativo: Mais se aprende dos costumes a índole dos homens do que pela leitura de grossos volumes, homem sábio, meu pai! Arrumado nas ideias e na acção, o cuidado que punha em mandar abrir valas para enxugar os pântanos do Mondego..., bom administrador de sua casa como dos negócios da república, conhecedor como poucos da arte da guerra, perito do regimento da corte..., que saudades as minhas! Quando ele aparecia à porta da câmara cansado do estudo, meus meninos, desembaraçava-me eu do colo da ama e corria a estender-lhe os braços para o alto, ele avançava no seu andar manso, dobrava-se, içava-me a beijar-me..., a mim, enquanto sentia aquela barba ruiva arranhar-me a cara, semelhava-me estar a ver do cimo da torre de um castelo a sala e as pessoas lá em baixo muito pequenas..., depois sentava-se..., quantas vezes o fazia, com os filhos em roda e a minha mãe ao lado, a recordar as suas viagens por essa Europa fora..., de seu jeito, bem diferente, mas contava a minha aia e eu trazia os ouvidos cheios de histórias maravilhosas: que é dele o cavaleiro louro de olhos azuis?, lá vai cavalgando em seu corcel de prata e de arreios de ouro, seguem-no atrás os doze companheiros, Cristo mai-los discípulos, como fantasmas caminham sobre as montadas tarrenego mafarrico, não parecem desta vida, bestas do apocalis a correr campos de turcos, ladeiam já as margens do termodonte no país das amazonas, atravessam desertos em cima de dromedários e chegam à Noruega onde os dias não luzem mais do que quatro horas, passam Babilónia, a província dos centauros, a terra dos alarves em que os filhos são sepultura dos pais, nas serranias da arménia vêem a arca de noé, por damasco descem à Terra Santa, ao Egipto, onde assistem ao suplício de um mouro que por ter dado uma bofetada num peregrino é empalado numa vara afiada que lhe saía pela boca..., visitam a região dos gigantes, dos homens com cabeça de cão, dos pigmeus que têm guerra com as aves... em Meca admiram, suspenso no ar por seis pedras imãs, o moimento de mafoma... e entram no paraíso terreal, que é banhado por quatro rios: do Tigre, que corre por território dos assírios, saem ramos de ciprestes e de oliveiras; das ondas do Eufrates erguem-se palmeirais agitados pelo vento; do Géon, que circunda o chão da Etiópia, surgem homens cor de bronze; do Físon, que rodeia a região de Hevilath, onde nasce o ouro e se encontra o Bdélio e a Cornalina, esvoaçam papagaios coloridos em seus ninhos pelas águas... » In Fernando Campos, A Esmeralda Partida, 1995, Difel, Lisboa, 2008, ISBN 978-972-290-330-1.

Cortesia de Difel/JDACT

D. João II, JDACT, Literatura, Saber, Fernando Campos, 

segunda-feira, 14 de outubro de 2024

Todas as Almas. Javier Marías. «.. de 1930 o tinha acordado sem um tostão no bolso e com os olhos cautelosos e tímidos de quem tem de pedir emprestado e ainda não decidiu a quem»

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«Havia dias em que, mais do que acreditar que estava, na verdade estava em 1947, ou em 1914, ou em 1935, ou em 1960, ou em 1926, ou em qualquer um dos anos da sua longuíssima vida. Às vezes era possível intuir se Will se encontrava instalado num ano mau mediante uma leve expressão de temor (era um ser demasiado puro para que nele houvesse espaço para a preocupação, pois carecia absolutamente da visão de futuro sempre associada a tal sentimento) que, no entanto, nunca chegava a assombrar o seu olhar confiante e ufano.

Podíamos suspeitar que uma manhã de 1940 estava para ele dominada pelo medo dos bombardeamentos da noite anterior ou da seguinte, e que uma manhã de 1916 o podia encontrar um pouco abatido com as más notícias procedentes da ofensiva do Somme, e que uma de 1930 o tinha acordado sem um tostão no bolso e com os olhos cautelosos e tímidos de quem tem de pedir emprestado e ainda não decidiu a quem.

Noutros dias, o ligeiríssimo apagamento do seu imenso sorriso ou do brilho do seu olhar tão afectuoso era de todo indecifrável, nem sequer objecto de fabulação, porque, sem dúvida, devia-se a pesares e sensaborias da sua vida pessoal, que nunca interessou a um professor ou aluno. Nessa viagem contínua pela sua existência, quase tudo era insondável para os demais (tal como os retratos de séculos passados ou uma fotografia tirada anteontem). Como podíamos saber em que aflitiva jornada dos seus inúmeros dias se encontrava Will quando o víamos cumprimentar apenas com um meio sorriso, em vez Marías, Literatura, Espanha,

Como saber que troço melancólico do seu infindável trajecto estava a percorrer quando não erguia a mão naquele seu gesto infantil enquanto dava os bons-dias? Aquela mão verticalmente erguida, que nos fazia ter a convicção de que naquela cidade inóspita alguém ficava realmente alegre por nos ver, embora esse alguém não soubesse quem éramos ou, melhor dizendo, nos visse todas as manhãs como alguém diferente do dia anterior. Só por uma vez soube, graças a Cromer-Blake, em que momento exacto daquela sua vida sem sobressaltos, passada durante tantas horas atrás dos vidros da sua cabina, se encontrava Will. Cromer-Blake esperou por mim à porta do edifício e avisou-me: Diz algo ao Will, umas palavras de conforto.

Aparentemente, hoje está a viver no dia em que lhe morreu a mulher, em 1962, e ficaria muito magoado se um de nós não se apercebesse do sucedido ao entrar. Está muito triste, mas o seu bom humor natural permite-lhe usufruir do seu protagonismo de hoje apenas na medida certa para não perder de todo o sorriso. De modo que, até certo ponto, também está satisfeitíssimo. E, já sem olhar para mim,  fazer as suas deslocações sempre a correr para darem a impressão de um perpétuo sufoco e ocupação extrema nos intervalos entre uma e outra aula, as quais, no entanto, decorreram ou teriam de decorrer no mais absoluto sossego e despreocupação, como parte que eram do estar e não do fazer e nem sequer do fingir. Era o caso de Cromer-Blake e também do Inquisidor, também conhecido por Carniceiro ou Estripador, e cujo nome verdadeiro era Alec Dewar.» In Javier Marías, Todas as Almas, Editora Martins Fontes, 1998, Alfaguara, 2019, ISBN 978-989-665-914-4.

Cortesia de EMFontes/EAlfaguara/JDACT

 JDACT, Javier Marías, Literatura, Espanha,

domingo, 13 de outubro de 2024

Todas as Almas. Javier Marías. «Aquele que aqui conta o que viu e o que lhe aconteceu não é aquele que o viu e a quem aconteceu, nem o seu prolongamento nem a sua sombra nem o seu herdeiro nem o seu usurpador»

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«Dois dos três morreram desde que saí de Oxford, e isso faz-me pensar, supersticiosamente, que talvez tenham estado à espera de que eu chegasse e esgotasse o meu tempo ali para me darem a oportunidade de os conhecer e poder agora falar deles. É possível, portanto, e sempre supersticiosamente, que seja obrigado a falar deles. Não morreram senão quando deixámos de nos dar.

Pensamento não é apenas supersticioso, é também vaidoso. Mas para falar deles tenho de falar também de mim e da minha estada na cidade de Oxford. Mesmo que aquele que fala não seja o mesmo que lá esteve. Parece, mas não é o mesmo. Se a mim próprio me chamo eu ou se utilizo um nome que me tem acompanhado desde que nasci e pelo qual alguns me hão-de lembrar ou se conto coisas que coincidem com coisas que outros me atribuíram ou se chamo minha casa à casa que antes e depois foi ocupada por outros, mas que habitei durante dois anos, é só porque prefiro falar na primeira pessoa, não porque acredite que a faculdade da memória é suficiente para continuar a ser o mesmo em diferentes tempos e em diferentes espaços.

Aquele que aqui conta o que viu e o que lhe aconteceu não é aquele que o viu e a quem aconteceu, nem o seu prolongamento nem a sua sombra nem o seu herdeiro nem o seu usurpador. A minha casa tinha três andares e forma piramidal e nela passava muito tempo, dado que as minhas obrigações na cidade de Oxford eram praticamente nulas ou inexistentes. Com efeito, Oxford é, sem dúvida, uma das cidades do mundo onde menos se trabalha, e nela o facto de se estar revela-se muito mais decisivo que o de fazer ou até mesmo o de fingir.

Estar exige ali tanta concentração e paciência, e tanto esforço para lutar contra a letargia natural do espírito, que seria uma exigência desmesurada pretender que, além disso, os seus habitantes ainda se mostrassem activos, principalmente em público, apesar de alguns colegas costumarem fazer as suas deslocações sempre a correr para darem a impressão de um perpétuo sufoco e ocupação extrema nos intervalos entre uma e outra aula, as quais, no entanto, decorreram ou teriam de decorrer no mais absoluto sossego e despreocupação, como parte que eram do estar e não do fazer e nem sequer do fingir.

Era o caso de Cromer-Blake e também do Inquisidor, também conhecido por Carniceiro ou Estripador, e cujo nome verdadeiro era Alec Dewar. Mas quem negava todos os simulacros de agitação e dava corpo e verbo ao estatismo ou estabilidade do lugar era Will, o velho porteiro do edifício (a Institutio Tayloriana, assim chamada com pompa e em latim) onde eu costumava trabalhar em sossego e sem preocupações. Nunca vi um olhar tão limpo (certamente não na minha cidade, Madrid, onde não existem olhares limpos) quanto o daquele homem de quase noventa anos, pequeno e polido, invariavelmente vestido com uma espécie de macacão azul, a quem era permitido permanecer muitas manhãs na sua cabina envidraçada a dar os bons-dias aos professores à medida que iam entrando. Will não sabia, literalmente, em que dia vivia, e assim, sem que ninguém pudesse prever a data que escolhera e menos ainda saber o que determinava a sua escolha, passava todas as manhãs em anos diferentes, a viajar para trás e para a frente no tempo de acordo com a sua vontade ou, melhor dizendo, provavelmente à margem da sua vontade». In Javier Marías, Todas as Almas, Editora Martins Fontes, 1998, Alfaguara, 2019, ISBN 978-989-665-914-4.

 Cortesia de EMFontes/EAlfaguara/JDACT

JDACT, Javier Marías, Literatura, Espanha,,

domingo, 29 de setembro de 2024

Sermão da Sexagésima. Padre António Vieira. «Sendo, pois, certo que a palavra divina não deixa de frutificar por parte de Deus, segue-se que ou é por falta do pregador ou por falta dos ouvintes. Por qual será? Os pregadores deitam a culpa aos ouvintes, mas não é assim»

Cortesia de wikipedia

Pregado na Capela Real, no ano de 1655. Semen est verbum Dei. S. Lucas, VIII

«Deixará de frutificar a sementeira, ou pelo embaraço dos espinhos, ou pela dureza das pedras, ou pelos descaminhos dos caminhos; mas por falta das influências do Céu, isso nunca é nem pode ser. Sempre Deus está pronto da sua parte, com o sol para aquentar e com a chuva para regar; com o sol para alumiar e com a chuva para amolecer, se os nossos corações quiserem: qui solem suum oriri facit super bonos et malos, et pluit super justos et injustos. Se Deus dá o seu sol e a sua chuva aos bons e aos maus; aos maus que se quiserem fazer bons, como a negará? Este ponto é tão claro que não há para que nos determos em mais prova. Quid debui facere vineae meae, et non feci?, disse o mesmo Deus por Isaías.

Sendo, pois, certo que a palavra divina não deixa de frutificar por parte de Deus, segue-se que ou é por falta do pregador ou por falta dos ouvintes. Por qual será? Os pregadores deitam a culpa aos ouvintes, mas não é assim. Se fora por parte dos ouvintes, não fizera a palavra de Deus muito grande fruto, mas não fazer nenhum fruto e nenhum efeito, não é por parte dos ouvintes. Provo.

Os ouvintes ou são maus ou são bons; se são bons, faz neles fruto a palavra de Deus; se são maus, ainda que não faça neles fruto, faz efeito. No Evangelho o temos. O trigo que caiu nos espinhos, nasceu, mas afogaram-no: Simul exortae spinae suffocaverunt illud. O trigo que caiu nas pedras, nasceu também, mas secou-se: Et natum aruit. O trigo que caiu na terra boa, nasceu e frutificou com grande multiplicação:

Et natum fecit fructum centuplum. De maneira que o trigo que caiu na boa terra, nasceu e frutificou; o trigo que caiu na má terra, não frutificou, mas nasceu; porque a palavra de Deus é tão funda, que nos bons faz muito fruto e é tão eficaz que nos maus ainda que não faça fruto, faz efeito; lançada nos espinhos, não frutificou, mas nasceu até nos espinhos; lançada nas pedras, não frutificou, mas nasceu até nas pedras. Os piores ouvintes que há na Igreja de Deus, são as pedras e os espinhos. E porquê? -- Os espinhos por agudos, as pedras por duras». In Sermões, padre António Vieira, 1655, Sermões Escolhidos. v.2, São Paulo, Edameris, 1965, Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro, Universidade de São Paulo, Universidade de Santa Catarina, Wikipédia.

Cortesia de USCatarina/Wikipedia/JDACT

 JDACT, Padre António Vieira, Século XVII, Sermões

Sermão da Sexagésima. Padre António Vieira. «Esta, tão grande e tão importante dúvida, será a matéria do sermão. Quero começar pregando-me a mim. A mim será, e também a vós»

Cortesia de wikipedia

Pregado na Capela Real, no ano de 1655. Semen est verbum Dei. S. Lucas, VIII

«(…) Lede as histórias eclesiásticas, e achá-las-eis todas cheias de admiráveis efeitos da pregação da palavra de Deus. Tantos pecadores convertidos, tanta mudança de vida, tanta reformação de costumes; os grandes desprezando as riquezas e vaidades do Mundo; os reis renunciando os ceptros e as coroas; as mocidades e as gentilezas metendo-se pelos desertos e pelas covas; e hoje? Nada disto. Nunca na Igreja de Deus houve tantas pregações, nem tantos pregadores como hoje. Pois se tanto se semeia a palavra de Deus, como é tão pouco o fruto? Não há um homem que em um sermão entre em si e se resolva, não há um moço que se arrependa, não há um velho que se desengane. Que é isto? Assim como Deus não é hoje menos omnipotente, assim a sua palavra não é hoje menos poderosa do que dantes era. Pois se a palavra de Deus é tão poderosa; se a palavra de Deus tem hoje tantos pregadores, porque não vemos hoje nenhum fruto da palavra de Deus? Esta, tão grande e tão importante dúvida, será a matéria do sermão. Quero começar pregando-me a mim. A mim será, e também a vós; a mim, para aprender a pregar; a vós, que aprendais a ouvir.

III

Fazer pouco fruto a palavra de Deus no Mundo, pode proceder de um de três princípios: ou da parte do pregador, ou da parte do ouvinte, ou da parte de Deus. Para uma alma se converter por meio de um sermão, há-de haver três concursos: há-de concorrer o pregador com a doutrina, persuadindo; há-de concorrer o ouvinte com o entendimento, percebendo; há-de concorrer Deus com a graça, alumiando. Para um homem se ver a si mesmo, são necessárias três coisas: olhos, espelho e luz. Se tem espelho e é cego, não se pode ver por falta de olhos; se tem espelho e olhos, e é de noite, não se pode ver por falta de luz. Logo, há mister luz, há mister espelho e há mister olhos. Que coisa é a conversão de uma alma, senão entrar um homem dentro em si e ver-se a si mesmo? Para esta vista são necessários olhos, e necessária luz e é necessário espelho. O pregador concorre com o espelho, que é a doutrina; Deus concorre com a luz, que é a graça; o homem concorre com os olhos, que é o conhecimento. Ora suposto que a conversão das almas por meio da pregação depende destes três concursos: de Deus, do pregador e do ouvinte, por qual deles devemos entender que falta? Por parte do ouvinte, ou por parte do pregador, ou por parte de Deus? Primeiramente, por parte de Deus, não falta nem pode faltar. Esta proposição é de fé, definida no Concílio Tridentino, e no nosso Evangelho a temos. Do trigo que deitou à terra o semeador, uma parte se logrou e três se perderam. E porque se perderam estas três? A primeira perdeu-se, porque a afogaram os espinhos; a segunda, porque a secaram as pedras; a terceira, porque a pisaram os homens e a comeram as aves. Isto é o que diz Cristo; mas notai o que não diz. Não diz que parte alguma daquele trigo se perdesse por causa do sol ou da chuva. A causa por que ordinariamente se perdem as sementeiras, é pela desigualdade e pela intemperança dos tempos, ou porque falta ou sobeja a chuva, ou porque falta ou sobeja o sol. Pois porque não introduz Cristo na parábola do Evangelho algum trigo que se perdesse por causa do sol ou da chuva? Porque o sol e a chuva são as afluências da parte do Céu, e deixar de frutificar a semente da palavra de Deus, nunca é por falta: do Céu, sempre é por culpa nossa» In Sermões, padre António Vieira, 1655, Sermões Escolhidos. v.2, São Paulo, Edameris, 1965, Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro, Universidade de São Paulo, Universidade de Santa Catarina, Wikipédia.

 Cortesia de USCatarina/Wikipedia/JDACT

JDACT, Padre António Vieira, Século XVII, Sermões,

O Último Cabalista de Lisboa. Richard Zimler. «Apelidados de cristãos-novos, foram-lhes dados vinte anos para abandonarem os usos judaicos tradicionais, promessa essa que se veio a revelar falsa ao longo das duas décadas de intolerância e perseguições que se seguiram»

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A descoberta do manuscrito de Berequias Zarco

«(…) O último Cabalista de Lisboa é, em si, um pouco um enigma. Porque terá sido escondido na cave de Ayaz Lugo? Porque será que não é referido pelos manuscritos judaicos seus contemporâneos? Nunca terá sido publicado? Dado o seu objectivo de alertar os cristãos-novos e os judeus para o permanente perigo que corriam na Europa, Berequias devia ter tentado seguramente dar-lhe a maior divulgação possível. Várias explicações me foram propostas por Ruth Pimentel, da Universidade de Paris, que mais tarde foram seguidas pela maior parte dos demais especialistas no campo da literatura sefardita medieval que consultei. Antes de mais nada, a depreciativa caracterização que Berequias faz dos cristãos-novos e o seu declarado apelo aos judeus e aos cristãos-novos para que abandonem a Europa haveria certamente de enfurecer os reis europeus e as autoridades religiosas, em particular os inquisidores de Portugal e de Espanha. Se ele levasse a sua obra para a Europa cristã, as cópias que fossem descobertas haveriam de ser eliminadas e queimadas. É também provável que a sua ardente defesa da imigração judaica haveria de irritar os dirigentes das enfraquecidas comunidades judaicas da região, tanto os agrupamentos secretos sefarditas em Portugal e em Espanha como as comunidades mais abertas dos asquenazins nos países do Norte da Europa. Estes judeus ou cristãos-novos, que tinham um interesse espiritual, emocional ou monetário para permanecer na Europa, poderiam igualmente suprimir os seus escritos. Para mais, o modo como Berequias trata questões como o sexo e o cisma entre cabalistas e autoridades rabínicas poderia ser considerado demasiado directo para que certos leitores o pudessem apreciar. Os seus escritos seriam certamente considerados tabu por muitos dirigentes judaicos conservadores que procuravam resistir à era do judeu secular que se aproximava. Apesar de me suscitar dúvidas, não posso deixar de referir uma outra teoria: é possível que o próprio Berequias tivesse suprimido os seus escritos; não só por não ter querido expor a perseguições os judeus secretos mencionados no texto, como também porque a excomunhão por alegada heresia não era nada de desconhecido. Apesar da veemente necessidade de avisar os judeus da Europa do destino que seu tio pressagiava, pode ter receado ver-se cortado da sua comunidade, como o foi outro judeu de origem portuguesa um século mais tarde, Baruch Espinosa. Talvez tenha feito circular em segredo cópias do seu livro, pedindo aos seus leitores que não revelassem o conteúdo nem mencionassem sequer a sua existência. Será talvez essa a razão por que não tem título. Outra razão, bem mais desencorajante: quem sabe se não o mataram ao tentar reentrar em Portugal e salvar a sua prima Reza? As cópias das suas obras que tivesse escrito e levado para a Ibéria teriam assim certamente perecido com ele. Apenas as que tinham ficado escondidas em Constantinopla teriam sobrevivido. Quanto ao esconderijo, o mais provável é que os manuscritos tivessem sido ocultados para os proteger durante o período nazi; a cobertura de cimento data desse tempo. Lembremo-nos que os cristãos-novos portugueses emigraram em massa ao longo dos séculos XVI, XVII e XVIII, sobretudo para a Turquia, Grécia, Norte de África, Holanda e Itália, regiões que mais tarde se veriam ameaçadas ou ocupadas pelo Reich alemão. Por exemplo, nos finais do século XVI, como resultado da emigração dos cristãos-novos, só Constantinopla contava com uma comunidade judaica de 30 000 pessoas e 54 sinagogas, a maior da Europa. Durante a II Guerra Mundial, a maior parte dos judeus ibéricos que viviam na Grécia, Bulgária e Jugoslávia, 200 000 ou mais, foram presos e morreram nas câmaras de gás. Se considerarmos o apelo de Berequias para que os judeus e cristãos-novos deixassem os países cristãos, é interessante notar que a comunidade judaica na Turquia muçulmana contava com a protecção do Governo e escapou inteiramente à destruição. Apesar disso, o proprietário ou proprietários dos manuscritos de Berequias, talvez os pais de Lugo, teriam justamente receado o alastramento das perseguições à Turquia, tal como Berequias temera o alastramento da Inquisição (maldita) de Castela a Portugal quatro séculos antes. A Inquisição (maldita) foi definitivamente estabelecida em Portugal em 1536, cerca de 50 anos depois de ter sido criada em Espanha e apenas seis anos depois de Berequias ter completado o último dos seus manuscritos. Teria Ayaz Lugo sabido da existência dos manuscritos? No seu testamento não lhes faz referência. Possivelmente tinham sido escondidos pelos seus pais, sem que ele o tivesse sabido. Cabe-me agradecer, antes de mais, a Abraham Vital, que me ofereceu generosamente a sua casa e, posteriormente, me permitiu utilizar os textos de Berequias Zarco. Gostaria igualmente de manifestar o meu apreço à sua mulher, Miriam Rosencrantz Vital, que muitas vezes me valeu durante os meus tardios serões com um copo de vinho do Porto e os seus cuscuz caseiros. Este livro é publicado em memória de Berequias Zarco, família e amigos.

 

Nota histórica

Em Dezembro de 1496, quatro anos depois de expulsarem do seu reino todos os judeus, os soberanos de Espanha, Fernando e dona Isabel, convenceram o rei de Portugal, Manuel I, a fazer o mesmo. Em troca, os monarcas espanhóis concediam-lhe em casamento a mão de sua filha. Pouco antes de a ordem de expulsão ser aplicada, Manuel I, que não queria perder tão preciosos súbditos, decidiu converter os judeus portugueses. Em Março de 1497, mandou encerrar todos os portos de embarque e ordenou que se reunissem todos os judeus e os conduzissem à força à pia baptismal. Embora os relatos que chegaram até aos nossos dias refiram judeus que preferiram dar-se à morte e matar os filhos a converterem-se, a maior parte deles acabaram por se ver forçados a aceitar Jesus como o Messias. Apelidados de cristãos-novos, foram-lhes dados vinte anos para abandonarem os usos judaicos tradicionais, promessa essa que se veio a revelar falsa ao longo das duas décadas de intolerância e perseguições que se seguiram. Mesmo assim, muitos dos novos cristãos persistiram nas suas crenças. Em segredo e ao preço de riscos enormes, continuaram a recitar as suas orações hebraicas e a praticar os seus rituais, sobretudo os do Sabbat e das festas judaicas. Um desses judeus clandestinos era Berequias Zarco, o narrador d’O último Cabalista de Lisboa. As circunstâncias que rodearam a descoberta do manuscrito de Zarco em Istambul, em 1990, constam de uma Nota do Autor. Dessa mesma nota constam igualmente algumas observações quanto ao estilo adoptado na transcrição do texto original. No entanto, os leitores deverão desde já ter presente que, ao preparar o trabalho para publicação, esforcei-me por preservar o tom extremamente natural e directo do autor». In Richard Zimler, O Último Cabalista de Lisboa, 1996, Quetzal Editores, Lisboa, ISBN 978-972-004-491-4.

Cortesia de QuetzalE/JDACT

JDACT, Richard Zimler, Judeus, História Local, Conhecimentos

O Último Cabalista de Lisboa. Richard Zimler. «Berequias não é sempre coerente na grafia do português, talvez devido à dificuldade de transcrever a língua da sua terra em caracteres hebraicos»

jdact

A descoberta do manuscrito de Berequias Zarco

«(…) Infelizmente, numerosas secções e mesmo simples páginas dos manuscritos de Berequias tinham sido reunidos fora da ordem por alguém manifestamente incapaz de ler o judeu-português. Era de enlouquecer. Levei dois meses para voltar a pôr tudo por ordem. Mas uma vez isso feito, o livro de Berequias Zarco lia-se perfeitamente. Os três manuscritos históricos no seu conjunto formam uma obra única, narrando a odisseia da família de Berequias durante os trágicos acontecimentos de Abril de 1506. Contam, em particular, a perseguição que Berequias moveu ao assassino do seu amado tio Abraão, um famoso cabalista provavelmente responsável por algumas das obras da Escola de Lisboa, até hoje consideradas anónimas, incluindo, por razões que a narrativa torna claras, Batendo às Portas e o Livro do Fruto Divino. São vários os breves relatos da matança que chegaram até nós, incluindo um de Salomão Ben Verga referido por Berequias, e não pode haver dúvidas quanto à veracidade da crónica de Berequias. Todos os principais acontecimentos aí relatados foram confirmados por escritos contemporâneos. Muitas das pessoas mencionadas, como Didi Molcho, João de Mascarenhas e Isaac Ben Farraj são nossos conhecidos através das suas obras assim como através de documentos da Igreja e da Coroa portuguesa. Alguns leitores menos familiarizados com a literatura sefardita e novo-cristã do século XVI poderão estranhar a minha reprodução da história de Berequias sob a forma de um mistério e o uso da linguagem coloquial. Berequias Zarco é, porém, como tantos dos seus contemporâneos, um autor moderno tanto na visão como no estilo. O segundo manuscrito, em especial, manifesta uma técnica directa que se assemelha à da novela picaresca espanhola, que começava a aparecer aproximadamente na mesma época dos manuscritos de Berequias. Curiosamente, muitos dos autores picarescos espanhóis eram também judeus convertidos. Berequias Zarco estava inegavelmente familiarizado com esses contemporâneos castelhanos.

Ao contrário das novelas picarescas, porém, o tom de Berequias quase nunca é irónico e nunca burlesco. Além disso, o seu personagem principal, ele próprio, não é nem um vilão nem um herói. É simplesmente aquilo que Berequias deve ter sido: um jovem inteligente e confuso, que fazia iluminuras, que vendia fruta e era cabalista; um jovem destroçado pela morte de seu tio. A linguagem franca de Berequias recorre a palavrões, afirmações claramente blasfemas e mesmo calão, que tentei manter na íntegra. Parece-me evidente que se a intenção de Berequias tivesse sido a de escrever mais um documento místico ou mesmo um texto histórico mais circunspecto, tê-lo-ia feito. Tinha talento e conhecimentos para tanto. A verdade é que não o fez. Escreveu um mistério em três partes, a última das quais poderia ser considerada pelos críticos contemporâneos como um epílogo. Tendo em atenção o leitor moderno, dividi essas três partes em vinte capítulos. Os capítulos I a VIII correspondem ao primeiro dos manuscritos de Berequias; do IX ao XX, ao segundo manuscrito; e o XXI ao terceiro. Apesar de O último Cabalista de Lisboa ser mais que uma tradução, mantive-me rigorosamente fiel ao conteúdo do escrito de Berequias, a não ser em dois casos: quando ele inclui extensas recitações de orações e de cânticos; e quando faz digressões sobre pontos espirituais associados aos arcanos essenciais relacionados com a Cabala. Apesar de se revestirem de interesse académico, seriam provavelmente dificultosos e aborrecidos para o leitor, e excluí-os por isso da minha transcrição. Do mesmo modo, várias secções foram reordenadas segundo a ordem cronológica, quando antes estavam ligadas segundo a tese espiritual que Berequias procurava demonstrar. Creio que também este facto não altera de modo substancial a obra de Berequias, e a estrutura que adoptei fará certamente mais sentido para o leitor moderno.

De um modo geral, procurei estabelecer um equilíbrio entre a linguagem contemporânea e o uso ocasional de uma ou outra palavra ou frase mais antiga. No seu conjunto, a obra permanece, assim o espero, fiel ao espírito do autor. Berequias não é sempre coerente na grafia do português, talvez devido à dificuldade de transcrever a língua da sua terra em caracteres hebraicos. Por isso mesmo, as transcrições do português são feitas de acordo com as convenções actuais. Sempre que se transcrevem palavras hebraicas, recorre-se aos caracteres latinos, de modo a poderem ser pronunciados pelos leitores americanos e europeus. Os manuscritos de Berequias levantam algumas questões importantes sobre a história dos livros hebraicos na Ibéria. Será a Tora ilustrada que ele descobre na geniza de seu tio a chamada Bíblia de Kennicott, que hoje pertence à Biblioteca Bodleian da Universidade de Oxford? A referência às letras em forma de animal e a Isaac Bracarense (indubitavelmente Isaac de Braga, por quem o manuscrito foi ilustrado) parece indicar nessa direcção. Nada se sabe da história da Bíblia desde a data do seu acabamento em 1476 até à sua aquisição em 1771 por Oxford, a conselho do bibliotecário, Kennicott. Talvez tenha de facto sido salva por Abraão e Berequias Zarco. Quanto à versão hebraica e árabe da Fonte da Vida detida por frei Carlos: teria sido realmente passada para Salónica? Que lhe terá, então, acontecido? Nunca foi encontrado nenhum original árabe, apenas traduções latinas». In Richard Zimler, O Último Cabalista de Lisboa, 1996, Quetzal Editores, Lisboa, ISBN 978-972-004-491-4.

Cortesia de QuetzalE/JDACT

JDACT, Richard Zimler, Judeus, História Local, Conhecimentos,

sábado, 28 de setembro de 2024

Milan Kundera. A Brincadeira. «Saídos do recinto do hospital, logo fomos dar a um grupo de edifícios novos que, uns a seguir aos outros, se elevavam desarmoniosamente de um solo poeirento desnivelado (sem relva, sem passeios, sem asfalto) e formavam um triste cenário nos confins dos campos, vastos e planos, estendidos a perder de vista»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Era um ser estranho, simultaneamente de uma moralidade rígida e cu-riosamente inquieto e instável, de quem, pelo que eu sabia, a mulher se tinha divorciado ao fim de vários anos pelo simples facto de ele viver indiscriminadamente em qualquer lado, desde que fosse longe da mulher e dos filhos. Assustava-me a ideia de que ele se pudesse ter voltado a casar, circunstância propícia a complicar a satisfação do meu pedido, e apressei o passo em direcção ao hospital.

O hospital é um conjunto de edifícios e pavilhões semeados aqui e ali sobre um vasto espaço de jardins; entrei na pequena guarita junto ao portão e pedi ao porteiro sentado atrás de uma mesa para me pôr em contacto com a secção de virologia; ele empurrou o telefone para o canto da mesa do meu lado e disse: Zero dois!  Marquei o zero dois e fiquei a saber que o doutor Kostka saíra há alguns segundos e que estaria prestes a chegar à saída. Sentei-me num banco perto da porta principal para me assegurar de que o não perderia, e olhava distraidamente os homens passeando-se em roupão de hospital, de riscas azuis e brancas, quando o vi: vinha pensativo, alto, magro, simpático na sua falta de presença, sim, era mesmo ele. Levantei-me do meu banco e fui direito a ele como se fosse empurrá-lo; deitou-me um olhar de desagrado, mas depressa me reconheceu e me abriu os braços. Senti que a sua surpresa foi de quase felicidade, e a espontaneidade do seu acolhimento deu-me prazer.

Expliquei-lhe que tinha chegado havia uma hora para tratar de um assunto sem importância que me reteria ali perto de dois dias, e ele logo me manifestou a surpresa feliz por a minha primeira visita lhe ter sido dedicada. Foi-me subitamente desagradável não o ter vindo procurar com um espírito desinteressado, por ele só, e a pergunta que lhe fiz (perguntei-lhe jovialmente se voltara a casar) pareceu reflectir uma atenção sincera, quando, no fundo, provinha de um calculismo baixo. Disse-me (para minha satisfação) que continuava só. Declarei que tínhamos muito que contar um ao outro. Ele concordou e lamentou não dispor, infelizmente, de pouco mais de uma hora, visto ter ainda que voltar ao hospital e, no fim da tarde, ter de apanhar um autocarro para fora da cidade. Não mora aqui?, digo, assustado. Assegurou-me que sim, um estúdio num edifício novo, mas que é penoso viver solitário. Soube que Kostka tinha, numa outra cidade a vinte quilómetros, uma noiva professora, possuindo, também ela, um pequeno apartamento de duas assoalhadas. Vai viver com ela futuramente?, perguntei-lhe.

Disse-me que dificilmente encontraria trabalho noutro sítio tão interessante como aquele que lhe arranjara e que, pelo contrário, a sua noiva teria dificuldade em arranjar um lugar aqui. Pus-me a vituperar (de bom coração) as demoras da burocracia, incapaz de facilitar as coisas de maneira a que um homem e uma mulher possam viver juntos. Sossegue, Ludvik, disse-me com uma doce indulgência, que não é assim tão insuportável. A viagem custa-me, é certo, dinheiro e tempo, mas a minha solidão permanece intacta e sou livre. Porque tem um tal desejo de liberdade?, perguntei-lhe. Evocê?, disse ele. Eu ando atrás das raparigas, respondi-lhe. Não é pelas mulheres, é por mim que me faz falta a minha liberdade, disse, e acrescentou: Oiça, venha um momento a minha casa antes de eu me ir embora. Eu não pedia mais que isso.

Saídos do recinto do hospital, logo fomos dar a um grupo de edifícios novos que, uns a seguir aos outros, se elevavam desarmoniosamente de um solo poeirento desnivelado (sem relva, sem passeios, sem asfalto) e formavam um triste cenário nos confins dos campos, vastos e planos, estendidos a perder de vista. Atravessámos uma porta, subimos uma escada demasiado estreita (o elevador estava avariado) e detivemo-nos no terceiro andar, onde reconheci o nome de Kostka no cartão-de-visita. Quando, tendo atravessado a entrada, nos encontrámos na sala, senti-me mais que satisfeito: um grande e confortável divã ocupava um canto; além do divã, havia uma pequena mesa, uma poltrona, uma grande biblioteca, um gira-discos e um aparelho de rádio». In Milan Kundera, A Brincadeira, Publicações Dom Quixote, 1967, 4ª edição 1994, ISBN 972-200-014-4.

 Cortesia de PDQuixote/JDACT

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