quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

As Obras do Diabinho da Mão Furada. António José Silva. «… que eram poetas que se condenaram por darem epítetos às belezas humanas, chamando-lhes divinas, angélicas, idolatradas e soberanas, e outras semelhantes loucuras; e que por mais que se quiseram desculpar…»

jdact e wikipedia

«(…) E os que tinham as varas clamavam: socorro! Socorro! Da parte de el rei, deem vossas senhorias denúncia destes desacatos aos ministros reais, senhores escrivães, para que se seja dado o merecido castigo! E isto diziam, continuamente, mas quanto eles mais gritavam, mais os demónios lhes davam, dizendo-lhes: … varas, que por ambições de interesse e de cobiça mediram mal a justiça, merecem varejões. Quien tal hace, que tal pague (Cá se fazem, cá se pagam), diziam os demónios, que aqui não conhecemos nem rei nem roque. Perguntou o Soldado ao Diabinho que gente era aquela e ele respondeu-lhe que eram os alcaides (juízes) e meirinhos, (oficiais da justiça; polícias) e os que estavam por detrás os seus escrivães, guardas e porteiros, que se tinham condenado por fazerem mal os seus ofícios, e que, por terem sido instrumento da sua condenação as varas e os poderes delas, davam-lhe agora por tormento as pancadas daquelas grandes varas. Noutra câmara viu o Soldado algumas pessoas com expressões graves, sentadas em tribunais asquerosos, a quem muitos espíritos malignos estavam a fazer fogueiras de papel queimado e a abrasarem-nos com o fumo e o fogo lento, enquanto lhes diziam: … o interesse e o respeito a tal pena a causa deram, pois na vida vos fizeram fazer de torto direito. E, perguntando o Soldado ao seu fiel companheiro quem eram os defumados este disse-lhe que aqueles eram alguns ministros, que se tinham condenado por terem dado sentenças injustas, por paixões ou corrupção; e que aqueles papéis com que os ofendiam significavam os feitos delas, porque em todos os estados havia maus e bons. Noutra parte viu o Soldado alguns sujeitos sentados e ao redor deles muitos demónios atroando-lhe os ouvidos com disformes buzinas e dizendo-lhes de vez em quando este quarteto: … ouvidos que ouvir na vida não quiseram pretendentes, no inferno as tristes buzinas ouvirão eternamente.
E perguntando o nosso Soldado quem eram, respondeu o seu companheiro que eram os ministros que por fecharem as portas e os ouvidos aos pretendentes (arguidos) se condenaram. Admirado estava o Soldado por ver tal espectáculo e não conseguia convencer-se que fosse verdadeiro, julgando ser outra visão fantástica como a da fingida ponte, pois não se podia conceber que de homens cristãos e honrados coubesse tais desacertos. Ainda noutra câmara apareceram-lhe outras figuras a folhear grandes livros que alguns demónios lhe tiravam das mãos de vez em quando, e davam-lhes com eles às pancadas, dizendo-lhes estes dois, tão sábios e exemplares, epigramas: … folheais sem descansar os textos com desprazeres, pois os vossos maus pareceres vos fazem aqui penar, padeceis a infernal ira, pois fazeis com maldade ou da mentira verdade ou da verdade mentira. Perguntou o Soldado ao companheiro endiabrado quem eram aqueles. Ele respondeu-lhe que eram advogados que se condenaram por irem procurar textos para trapaças que queriam sustentar os seus constituintes pelo interesse que dele recebiam, mesmo entendendo que era prejuízo para a justiça das partes, e que em pena disso dava-se-lhes o tormento de estarem sempre a folhear aqueles livros com que os espancavam de vez em quando. A estes seguia-se outro conclave de pessoas muito esfarrapadas, rotas e mal vestidas, uns muito pensativos e sonhadores, outros mordendo as unhas e outros dando palmadas nas testas, fazendo gestos no ar como se fossem doidos, e atrás deles alguns demónios dando-lhe a seguinte vaia nestes dois quartetos: … pródigos, que despendendo tanto ouro e tanta prata, tantos rubis e diamantes, tantas pérolas e esmeraldas, encarecendo belezas que se hão-de tornar em nada, e que terão no fim da vida apenas uma mortalha!
Perguntando o Soldado ao seu companheiro da mão furada que gente era aquela, este respondeu-lhe que eram poetas que se condenaram por darem epítetos às belezas humanas, chamando-lhes divinas, angélicas, idolatradas e soberanas, e outras semelhantes loucuras; e que por mais que se quiseram desculpar, dizendo que era ornato e exaltação da poesia as hipérboles daquelas lisonjas, não lhes foi aceite a desculpa. Aqueles que ali vês mais pensativos estão loucos, buscando conceitos no entendimento para um texto poético no qual diz que Plutão condenou o rapto de Prosérpina, feito por ele próprio, (Plutão, Hades, para os Gregos, era, de acordo com a mitologia romana, o deus do mundo inferior e senhor da terra dos mortos; segundo a mitologia, apaixonou-se por Prosérpina, Perséfone para os Gregos, e quando a viu, um dia, sozinha a colher flores num prado, irrompeu do fundo da terra, raptou-a e levo-a para o seu reino onde casou com ela e fê-la rainha do submundo; diz ainda a mitologia que o rapto de Prosérpina causou grande aflição ao mundo dos homens pois Prosérpina era filha de Ceres, Deméter, para os Gregos, a deusa da natureza e da fertilidade, e esta ficou de tal maneira inconsolável com a perda da filha que o mundo, antes eternamente ameno e florido, ficou estéril e mergulhado em frio e gelo; perante tal calamidade Júpiter, Zeus, para os Gregos, ordenou que Plutão deixasse que Prosérpina fosse para junto da mãe durante seis meses ao ano enquanto os outros seis permaneceria no submundo; deste acordo nasceram as diferentes estações do ano) e os que vês a bater na testa e a morder as unhas estão a pensar em consoantes para os versos que já começaram». In António José Silva (1705-1739), As Obras do Diabinho da Mão Furada, 1861, A Primeira Novela Sobrenatural Portuguesa, Luso Livros, Nova forma de Ler, ISBN 978-989-817-496-3.

Cortesia de LLivros/JDACT