quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

Claraboia. José Saramago. «Depois passou a mão pelo rosto, apalpou os ossos e a barba. De má vontade, levantou-se e deu alguns passos no quarto. Tinha uma figura algo quixotesca, empoleirado nas altas pernas…»

jdact

«Em todas as almas, como em todas as casas, além da fachada, há um interior escondido». In Raul Brandão

«Por entre os véus oscilantes que lhe povoavam o sono, Silvestre começou a ouvir rumores de loiça mexida e quase juraria que transluziam claridades pelas malhas largas dos véus. Ia aborrecer-se, mas percebeu, de repente, que estava acordando. Piscou os olhos repetidas vezes, bocejou e ficou imóvel, enquanto sentia o sono afastar-se devagar. Com um movimento rápido, sentou-se na cama. Espreguiçou-se, fazendo estalar rijamente as articulações dos braços. Por baixo da camisola, os músculos do dorso rolaram e estremeceram. Tinha o tronco forte, os braços grossos e duros, as omoplatas revestidas de músculos encordoados. Precisava desses músculos para o seu ofício de sapateiro. As mãos, tinha-as como petrificadas, a pele das palmas tão espessa que podia passar-se nela, sem sangrar, uma agulha enfiada. Num movimento mais lento de rotação, deitou as pernas para fora da cama. As coxas magras e as rótulas tornadas brancas pela fricção das calças que lhe desbastavam os pelos entristeciam e desolavam profundamente Silvestre. Orgulhava-se do seu tronco, sem dúvida, mas tinha raiva das pernas, tão enfezadas que nem pareciam pertencer-lhe. Contemplando com desalento os pés descalços assentes no tapete, Silvestre coçou a cabeça grisalha. Depois passou a mão pelo rosto, apalpou os ossos e a barba. De má vontade, levantou-se e deu alguns passos no quarto. Tinha uma figura algo quixotesca, empoleirado nas altas pernas como andas, em cuecas e camisola, a trunfa de cabelos manchados de sal-e-pimenta, o nariz grande e adunco, e aquele tronco poderoso que as pernas mal suportavam. Procurou as calças e não deu com elas. Estendendo o pescoço para o lado da porta, gritou: Mariana! Eh, Mariana! Onde estão as minhas calças? (Voz de dentro:) Já lá vai! Pelo modo de andar, adivinhava-se que Mariana era gorda e que não poderia vir depressa. Silvestre teve que esperar um bom pedaço e esperou com paciência. A mulher apareceu à porta: estão aqui. Trazia as calças dobradas no braço direito, um braço mais gordo que as pernas de Silvestre. E acrescentou: Não sei que fazes aos botões das calças, que todas as semanas desaparecem. Estou a ver que tenho que passar a pregá-los com arame... A voz de Mariana era tão gorda como a sua dona. E era tão franca e bondosa como os olhos dela. Estava longe de pensar que dissera um gracejo, mas o marido sorriu com todas as rugas da cara e os poucos dentes que lhe restavam. Recebeu as calças, vestiu-as sob o olhar complacente da mulher e ficou satisfeito, agora que o vestuário lhe tornava o corpo mais proporcionado e regular. Silvestre era tão vaidoso do seu corpo como Mariana desprendida do que a Natureza lhe dera. Nenhum deles se iludia a respeito do outro e bem sabiam que o fogo da juventude se apagara para nunca mais, mas amavam-se ternamente, hoje como há trinta anos, quando do casamento. Talvez agora o seu amor fosse maior, porque já não se alimentava de perfeições reais ou imaginadas.
Silvestre foi atrás da mulher até à cozinha. Enfiou na casa de banho e voltou daí a dez minutos, já lavado. Não vinha penteado porque era impossível domar a grenha que lhe dominava (dominava é o termo) a cabeça, o lambaz do barco, como lhe chamava Mariana. As duas tigelas de café fumegavam sobre a mesa, e havia na cozinha um cheiro bom e fresco de limpeza. As faces redondas de Mariana resplandeciam, e todo o seu corpo obeso estremecia e se agitava movendo-se na cozinha. Cada vez estás mais gorda, mulher!... E Silvestre riu. Mariana riu com ele. Duas crianças, sem tirar nem pôr. Sentaram-se à mesa. Beberam o café quente em longos sorvos assobiados, por brincadeira. Cada um queria vencer o outro no assobio. Então, que resolvemos? Agora, Silvestre já não ria. Mariana também estava sisuda. Até as faces pareciam menos coradas. Eu não sei. Tu é que resolves. Já ontem te disse. A sola está cada vez mais cara. A freguesia queixa-se de que levo caro. É a sola... Não posso é fazer milagres. Sempre queria que me dissessem quem é que trabalha mais barato que eu. E ainda se queixam... Mariana deteve-o no desabafo. Por este caminho não resolviam nada. O que era preciso era ver essa questão do hóspede. Pois é, fazia jeito. Ajudava-nos a pagar a renda e, se fosse um homem sozinho e tu quisesses encarregar-te da roupa, a gente equilibrava-se. Mariana escorripichou o café adocicado do fundo da tigela e respondeu: Cá por mim, não me importo. Sempre é uma ajuda... Pois é. Mas estarmos outra vez a meter hóspedes, depois de nos vermos livres dessa cavalheira que se foi embora... Que remédio! Seja ele boa pessoa... Eu dou-me bem com toda a gente, se se derem bem comigo. Experimenta-se uma vez mais... Um homem só, que só venha dormir, é o que convém. Logo, à tarde, vou pôr o anúncio. Mastigando ainda o último bocado de pão, Silvestre levantou-se e declarou: bom, vou trabalhar. Regressou ao quarto e caminhou para a janela. Afastou a cortina que formava um pequeno biombo que o isolava do quarto. Havia um estrado alto e sobre ele a banca de trabalho. Sovelas, formas, bocados de fio, latas de prego miúdo, retalhos de sela e pele. A um canto, a onça de tabaco francês e os fósforos». In José Saramago, Claraboia, 1953, Editorial Caminho, 2011, ISBN 978-972-212-441-6.

Cortesia ECaminho/JDACT