sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

Segredos de Lisboa. Inês Ribeiro e Raquel Plicarpo. «… o som dos almofarizes, onde se moíam as ervas locais e se faziam misturas com alguns preciosos produtos vindos do Oriente, que só alguns naquela cozinha sabiam e podiam usar»

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O castelo de São Jorge. Um gigante de vigia à cidade
«(…) Lisboa tinha respirado fundo nessa altura, e ela mais que muitos, para logo se preocupar com as notícias oriundas dos campos de batalha, novas de vitórias sofridas e de homens perdidos, mas também de um rei corajoso rodeado de fiéis validos, jovens valentes como Nuno Álvares Pereira, tão pio como bravo e o melhor amigo que João I podia ter. Tantas vitórias tinham acabado por lhe trazer este amargo de boca. Um bom rei, era certo, mas João I mais parecia pedreiro, tão dedicado estava a fazer obras nos palácios reais e agora até ali no castelo! Já não bastava tê-lo entregado à protecção de um santo inglês, e agora ainda tinha desatado a mudar o que ali havia e a construir novas casas. Um dos aios do rei bem lhe tinha tentado fazer mudar as ideias, explicando que o velho paço real iria ficar mais bonito e o castelo mais seguro, mas tudo isso não a fazia mudar de ideias e gostar de toda a confusão de obras que p’rali ia. Parecia que durante toda a sua vida tinha visto aquele castelo em obras, rei após rei fazendo alterações e acrescentando coisas. Cavalariças, palácios nobres, Casas das Rainhas, igrejas e capelas, tudo cabia no topo da colina. Ainda há poucos anos o rei Fernando I pusera a cidade em alvoroço com a construção da nova muralha à volta da cidade e o paço, quando trouxera para a Torre do Haver os arquivos do reino. É claro que ela sabia que a muralha a protegia e que se o rei queria os arquivos ali, ele é que sabia, mas desde então nunca mais ninguém lhe tirara o medo que uma vela mal apagada pusesse fogo a todos os papéis que ali guardavam e acabasse por consumir todo o paço.
Enquanto isso não acontecia, dona Mécia lá se tinha resignado a rezar ao santo dos ingleses, pedindo-lhe que protegesse este castelo que agora lhe fazia honra. Até porque, apesar de barulhentos, os poucos soldados ingleses que ainda por ali andavam nunca lhe tinham dado razão de queixa com brigas e más criações, e eram sempre simpáticos quando iam à cozinha pedir mais alguma cerveja ou carne. Certamente não queriam deixar ficar mal aquela que agora era rainha de Portugal, dona Filipa Lencastre, essa inglesa tão clara que quase parecia uma das imagens das igrejas. Pouco ainda a vira. e sempre ao longe, mas bastava-lhe saber que era uma boa cristã e que fazia o seu rei feliz, pois na corte ninguém conseguia ignorar o sentimento que acabara por unir aqueles esposos que só se tinham conhecido no dia do casamento. Estavam certamente fadados a uma vida feliz e com uma grande prole, querendo Deus.
Como fazia todas as manhãs desde que se lembrava, foi à Igreja de Santa Cruz dizer uma pequena prece pelo sucesso do reino antes de se dirigir às cozinhas. Atravessou depois o bairro em direcção ao paço, que já via por entre os telhados. Era um conjunto estranho, construído ao longo de várias décadas por vários reis que haviam adicionado novos andares, salas e salões, criando o que ao longe mais parecia uma pequena aldeia com telhados de diferentes alturas, pátios e capelas. Raramente lá ia, porque as cozinhas e todos os edifícios destinados aos criados ficavam numa zona à parte e era aí que fazia o seu trabalho, de supervisionar as doceiras que confecionavam as sobremesas e os doces com que a família real e a corte terminavam as refeições. A azáfama nas cozinhas era sempre muito grande, com várias dezenas de criados ocupando-se dos diferentes afazeres que uma cozinha real implicava. No pátio da entrada, a um canto, várias garotas depenavam galos e galinhas e descascavam os legumes que iriam depois ser usados nos guisados. Dentro do grande salão, há horas que os assadores tinham posto os animais no espeto e os padeiros haviam começado a fazer o pão e a massa das tartes. Esse lado da cozinha era sempre o mais fumarento, as grandes chaminés esforçando-se para dar vazão às fogueiras e aos fornos instalados num pequeno vão. Ali dona Mécia podia ainda ver vários criados de volta de largos panelões suspensos sobre as lareiras, onde se começavam os ensopados de grão, favas e carne. O recheio das tartes de miúdos já fritava nas grandes sertãs, normalmente penduradas em fileiras ao longo das paredes, deitando o doce aroma das especiarias e ervas aromáticas que as temperavam. Estas amontoavam-se em pequenos cestos de verga, espalhados pela grande cozinha para que todos pudessem chegar-lhes. Por todo o lado ecoava o som dos almofarizes, onde se moíam as ervas locais e se faziam misturas com alguns preciosos produtos vindos do Oriente, que só alguns naquela cozinha sabiam e podiam usar». In Inês Ribeiro e Raquel Policarpo, Segredos de Lisboa, A Esfera dos Livros, Lisboa, 2015, ISBN 978-989-626-706-3.

Cortesia de EdosLivros/JDACT