terça-feira, 10 de maio de 2016

A Rocha Branca. Fernando Campos. «Bailemos, bailemos, meus pequeninos! Mãos dadas, em volta dancemos! O canto conheço das aves todas das aves o canto conheço todas»

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«Cuidado, filha! Olha que cais! Menina, menina!, grita-me a aia. Não corra tanto. Venha antes para aqui tecer guirlandas... Minha mãe, Cléis, tinha menos de vinte anos e meu pai, Escamandrónimo, vinte e poucos, quando eu nasci. Puseram-me o nome de Safo. A seguir a mim, nasceram mais três irmãos, Caraxo, Eurígio e Lárico. Família aristocrática a nossa, descendente de Pêntilo, filho de Orestes, filho de Agamémnon. Vivemos em Éreso. Entre dois mares. Para lá das muralhas brancas, a um lado ondeia e murmura o azul do Egeu e ao outro, no tempo das colheitas, na concha da planície ondulam e desferem suas cítaras as loiras searas cantantes guardadas por medonhos espanta-corvos de esfarrapados braços abertos, cabeça de goela hiante, de mãos em garra e coração de palha... O mundo rústico em que vivi! Campos, bosques, regatos e açudes ladeados de salgueiros, a casa de meus pais, o cão amigo, a pocilga dos porcos, os leitõezinhos rosados a chuparem as tetas da porca, as galinhas e galos à solta a debicarem e esgravatarem minhocas no esterco, a perigosa colheita do mel e da cera das abelhas nas fendas de rochas e de árvores, o pomar as groselheiras, as amoras que tingem a boca...
Na relva do jardim, sob as macieiras floridas ou à sombra de ciprestes e sicómoros, leves esvoaçam as túnicas diáfanas das aias que cuidam das crianças. Contam-nos histórias dos deuses e dos heróis, mitos de Esopo, sussurro de fábulas... Ouço-as de olhos arregalados, a imaginação excitada procurando ver e palpar esses mundos fantásticos, o espírito enriquecido e estimulado para sempre... Era uma vez, fala Cléofis, um leão e um ónagro. Que é um ónagro?, pergunto. Um jumento selvagem. Jumento? Sim. Foram à caça juntos. O leão com a sua força, o ónagro com a rapidez das patas. Depois de caçarem vários animais, o leão separou a caça em três partes e disse: a primeira é para mim como primeiro que sou: sou o rei, não sou? A segunda para mim é, como participante na montaria. A terceira... adivinhai, queridinhos, para quem ficou... - Ficou para o ónagro?, digo. A terceira..., disse o leão, ... grande mal te espera, se não fugires. Oh!, digo desolada. O leão é mau, diz Íole. Pronto! Basta de histórias. Vamos mas é cantar e dançar. Elas ensinam-nos cantos e, quase nuas, dançamos de roda. Bailemos, bailemos, meus pequeninos! Mãos dadas, em volta dancemos!

O canto conheço das aves
todas
das aves o canto conheço
todas

Colhemos fores, gágeas amarelas, cerefólios brancos, cilas liliáceas, raminhos de funcho e eu teço grinaldas e com elas enfeito, entre risos, as cabecitas dos irmãos. E a mim, não?, pega-me ao colo dando-me mil beijos Cleonice, moça formosa de quinze anos, a túnica entreaberta descobrindo-lhe a nudez, os seios rijos encostados ao meu corpinho de menina. Não me engrinaldas com as ruas mãozitas de rosa? Ajeito-lhe no cabelo de oiro um raminho cheiroso de meliloto. Queridinha, já provaste o pé desta flor?, e Cleonice toma da relva trevos de cheiro, trinca um e dá-me outro a trincar. É bom, num péta!, faço uma careta. Pois é. Não presta. Não diz com o nome. Amargas lhes chamam na minha terra. Mas são boas para abrir o apetite. Gosto mais daquelas que têm suco doce. As glicínias, as madressilvas... Os suga-méis, as abelhas, as borboletas conhecem-lhes o néctar.
Num cabeço rochoso, em redor da acrópole fortificada, ergue-se a cidade, de casinhas brancas e telhados vermelhos, encostadas umas às outras. Dois riachos descem até ao mar. Nas margens, trina, grita e pipila a ramagem das tamargueiras que dá sombra aos rebanhos de cabras, cantam águas das fontes, descantam linfas-ninfas das ribeiras. Crescem loureiros-rosa bravos, de flores rubras. Na primavera tapetam o chão violetas, hiacintos e anémonas. De noite, ao luar, vem-nos das ondas o marulhar das Nereidas. Nos bosques de carvalhos, plátanos e pinheiros mansos, nos pomares de macieiras, marmeleiros, figueiras, romãzeiras, amendoeiras, em volta das casas, gorjeiam roussinóis. Nas encostas soalheiras amadurecem as vinhas. Param em Éreso, a descansar e a comer do nosso bom pão branco e a beber do nosso vinho borbulhante e perfumado, os marinheiros dos barcos que da Grécia fazem rota para Mitilene, para a Tróade e o Helesponto, para as cidades costeiras da Jónia. Por entre oliveirais e pinheirais, coleia, vigiada das escarpas e das nuvens por águias e gaviões, a estrada que leva ao outro lado da ilha. Nos altos, por clareiras de bosques e matagais, escondem-se bandos de perdizes, ouve-se-lhes o piar… Conheceis a história da perdiz traidora?, pergunta Íole. Conta! Conta!» In Fernando Campos, A Rocha Branca, Editora Objectiva, Alfaguara, 2011, ISBN 978-989-672-111-4.

Cortesia de EObjectiva/Alfaguara/JDACT