sexta-feira, 6 de maio de 2016

Abadia dos Cem Pecados. Marcello Simoni. « Deus é minha testemunha de que, se pudesse, vos levaria comigo. Apontou para a ferida nas costas. Receio, porém, não estar em condições de me mexer, nobre senhor... Não é a salvação que reclamo, mas conservar o segredo... Que segredo?»


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A pedra do exílio
Planalto de Crécy. 26 de Agosto de 1346
«(…) Já ia a meio do percurso quando foi obrigado a deter-se por mais algum tempo. Tinha os braços inchados e doridos. Ponderou libertar-se de outras partes da armadura para aliviar a carga, mas quase todas as fivelas que lhe prendiam as placas de aço ao corpo estavam dispostas ao longo das costas. Não foi, portanto, com muita confiança que esticou a mão direita em direcção a um ombro. Como previsto, só aflorou as omoplatas. Deitou-se, extenuado, e suplicou ao Senhor que o fizesse recuperar as forças. Não foi, porém, o Senhor a responder-lhe, mas um lamento agonizante. Maynard apercebeu-se de que se apoiara no corpo de um homem ainda vivo. Afastou-se imediatamente e viu-o prostrado em terra, numa pose grotesca, rodeado de cadáveres. Os traços do rosto eram nórdicos, ornados por uma barba vistosa e por uma magnífica armadura de placas cinzeladas. Teimava em manter a mão direita pousada no punho da espada; com a esquerda, por sua vez, agarrava a crina de um corcel crivado de setas, como se quisesse incentivá-lo ao ataque.
Mas aquele infeliz guerreiro já fora vencido pelo mais desapiedado inimigo. Sob as placas que lhe cobriam o peito, um corte na carne revelava o branco dos ossos e um novelo de vísceras semelhante a um galhardete gasto. Chegara a sua hora, mas não pareceu a Maynard que já tivesse passado para o outro lado. Como se intuísse os seus pensamentos, o homem largou a espada
e agarrou-lhe num braço. Jang..., - murmurou. Maynard fixou-o e apercebeu-se de que as suas íris azuis se moviam, esbatidas, sem se deterem sobre coisa alguma. É o vosso nome?, perguntou. O homem anuiu. Jang Blannen, repetiu com voz mais firme. E maldito seja quem me traiu. Tossiu sangue, agitando-se tomado de espasmos. Por um instante, Maynard pensou que o perdera, mas depois viu-o limpar o queixo com um gesto tremente e soltar um suspiro. Nem podia crer nos próprios ouvidos. Já escutara aquele nome antes, como a maior parte dos guerreiros chegados a Crécy. Jang Blannen, conhecido de todos como o rei João I da Boémia, era um dos mais preciosos aliados do soberano de França. Insistira em lançar-se ao ataque mesmo quando os dados do confronto já haviam sido lançados, desafiando as terríveis formações dos arqueiros ingleses. Então sois... E vós, cavaleiro?, interrompeu-o Jang, agarrando-se encarniçadamente à vida. Revelai o vosso nome... Mavnard Rocheblanche, respondeu-lhe. Para o servir. E é de facto um serviço…, aquilo que pretendo pedir-vos. Mavnard dirigiu-lhe um olhar desalentado. Deus é minha testemunha de que, se pudesse, vos levaria comigo. Apontou para a ferida nas costas. Receio, porém, não estar em condições de me mexer, nobre senhor... Não é a salvação que reclamo, mas conservar o segredo... Que segredo?
Jang Blannen pousou o olhar nele, dando-lhe quase a impressão de ter recuperado a visão. Depois, com extrema lentidão, retirou um objecto do interior da luva de ferro e entregou-lho. Rocheblanche recebeu-o sem fazer perguntas. Era um pequeno rolo de pergaminho enfiado num anel. Levai-o... Escondei-o, sussurrou o rei da Boémia. E não o mostreis a ninguém... A ninguém, nunca... Nem ao meu filho. Senhor, podeis dar-me a graça de vos explicardes...? Jang Blannen arqueou o tronco, tomado de um acesso de dor. Combateu os espasmos de dentes cerrados, com a barba hirsuta saturada de sangue. Não o esqueçais, pois fui traído por alguém que o queria... Tossiu com violência e depois, como que dirigindo-se à morte, fez-lhe sinal para que esperasse. Cegou-me com veneno, o maldito... pouco antes de me envolver na batalha... Dizei, majestade! Revelai-me o seu nome. O infeliz soberano encontrava-se no limite das forças. Colocou a nuca sobre o peito de cadáveres, dirigindo os olhos para o céu plúmbeo. Jurai, cavaleiro... A sua voz tornara-se quase impercetível. Jurai obedecer-me, suplico-vos... Antes que a alma me abandone o corpo... Maynard vacilou, gostaria de se ter subtraído à obrigação e deitar fora aquele rolo de pergaminho. Não compreendia o motivo, mas pressentia estar prestes a cometer um terrível erro, uma decisão que o comprometeria para sempre. Mas não conseguiu ignorar o sentido de dever. Estava diante de um rei moribundo, um homem que apelava à sua honra. E nada como a honra, em momentos tão obscuros, tornava os seres humanos semelhantes a anjos. Foi assim que, enquanto Jang Blannen exalava o último suspiro, Maynard Rocheblanche jurou guardar o seu segredo». In Marcello Simoni, A Abadia dos Cem Pecados, 2014, tradução de Inês Guerreiro, Clube do Autor, 2016, ISBN 978-989-724-278-6.

Cortesia de CdoAutor/JDACT