sábado, 26 de maio de 2018

A Cruz de Esmeraldas. Cristina de Torrão. «Ao constatarem que os al-hurí e as suas preciosas reservas estavam perdidos, os mouros apressaram-se a regressar à segurança das muralhas, logo fechando a bâb al-khawkha…»

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«(…) Eu..., vim dar de comer a Abdalah e ouvi a confusão. O que se passa? Os cristãos nem esperaram que o cerco estivesse bem montado para atacarem o bairro de Alcamim. O cerco? Quer dizer que se entenderam uns com os outros? Sim. Os portugueses estão a montar as suas tendas na colina a noroeste da cidade, a que está rodeada pelas duas ribeiras. Controlam assim a al-qasbã e o arrabalde deste lado. Os majus distribuíram-se entre a colina do outro lado do esteiro e o monte a oriente, em frente ao almocavar. A cidade está completamente cercada e o porto é controlado pelos barcos deles. Alá nos ajude! Eu levo-te a casa, anda! Aischa quase concordou. Mas de repente sentiu que não podia desperdiçar esta oportunidade: leva-me contigo lá para cima, Amir! O rapaz olhou-a perplexo: mas..., é perigoso demais... Só quero ver o que se passa. E os cruzados atacaram o bairro de Alcamim, não a cidade. Não vês que os homens sobre o adarve nem precisam de se defender?Mas... Por favor, Amir! Agarrou-lhe a mão e sentiu-o estremecer. Queria tanto ver o que se passa!
Com a mão dela na dele, o rapaz paralisou. E olhava-a como se o encantasse a ideia de passar alguns momentos com ela. Acabou por concordar: está bem. Mas ficas a meu lado, entendeste? Aconteça o que acontecer. Nem me passaria outra coisa pela cabeça. Amir sorriu-lhe, afagando-lhe a mão, e guiou-a pela escada acima. Não havia muito espaço sobre o adarve, tão cheio estava de homens. Alguns olhavam espantados para a moça coberta pelo véu azul-celeste, mas não a importunaram, pois Amir caminhava resoluto com ela pela mão. O rapaz encontrou um lugar vazio atrás de um merlão, já na zona da alcáçova. E os dois espreitaram com cuidado para o lado de fora. Os habitantes que restavam no bairro de Alcamim tentavam defender-se de uma tentativa de assalto perpetrada por alguns cruzados, arremessando pedras dos terraços das suas casas. O arrabalde ocidental era conhecido como bairro de Alcamim, devido à sua igreja de Santa Maria de Alcamim, uma santa moçárabe. Os cruzados, perguntou Aischa, não saberão que os habitantes do bairro são cristãos como eles? Ora, retorquiu Amir, o que sabem estes homens, vindos de tão longe, sobre a realidade aqui na nossa Lusbuna?
Os portugueses bem sabem o que são moçárabes, replicou ela furiosa. Ibn Errik não é o comandante deste cerco? Porque consente ele numa coisa destas? Não me parece que seja um ataque planeado. Pelos vistos, os majus mal podiam esperar para usar as suas armas e lançaram-se ao bairro já meio desabitado. Nisto, alguns mouros atreveram-se a uma surtida pela bâb al-khawkha, pois urgia defender os al-huri, os celeiros subterrâneos mais pequenos localizados no flanco da encosta da alcáçova. Mouros e moçárabes pareciam estar em vantagem devido à sua situação, por sobre a encosta. Mas cada vez mais cruzados se aventuravam pelas ruelas íngremes de Alcamim. Alguns lograram mesmo atingir a linha de cintura defensiva da alcáçova, um caminho que, começando na bâb al-khawkha, circundava o monte do castelo pelo poente e norte. Os atacados viram-se assim igualmente cercados pelo lado de cima.
Ao constatarem que os al-hurí e as suas preciosas reservas estavam perdidos, os mouros apressaram-se a regressar à segurança das muralhas, logo fechando a bâb al-khawkha e barrando a entrada à maior parte dos habitantes de Alcamim, que tentava agora desesperadamente fugir. Iniciaram-se combates sangrentos pelas ruelas do arrabalde. Os moçárabes serviam-se de adagas, punhais, ou mesmo de pedras. Este espectáculo não é para os teus olhos, disse Amir à sua noiva. Anda, vamos... Não te preocupes comigo! Nada me arrancaria daqui agora. Tenho que ver no que dá esta refrega! O rapaz observava-a espantado, mas ela quase não notou, concentrada nos acontecimentos. Até que bradou: muitos moçárabes conseguem fugir, circundam o monte. Não os podemos seguir?» In Cristina Torrão, A Cruz de Esmeraldas, Edição Ésquilo, 2009, ISBN 978-989-809-261-8.
                                                                                                             
Cortesia de Ésquilo/JDACT