quinta-feira, 31 de maio de 2018

No 31. Os Caçadores de Livros. Raphael Jerusalmy. «Villon contenta-se com dobrar um joelho, para observar as conveniências. E contudo sente uma presença, ou um sopro, que paira por cima dos telhados…»

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«(…) O grito do capitão ressoa na cabeça de François: rumo à Terra Santa, Terra Santa, Terra Santa... Tal como Colin, ele imagina grandes extensões ocre semeadas de palmeiras, de gordas plantas espinhosas, de oliveiras centenárias. Um céu azul do qual o sol nunca se ausenta. Um céu onde voam somente pombas brancas, em silêncio. E depois uma terra pedregosa e recortada em relevos nítidos e claros, sem musgos nem lama. É uma região maravilhosa, quase quimérica, que ele povoa sem dificuldade alguma de toda a espécie de anjos, de profetas barbudos, de génios maus e de madonas, mas cujos habitantes, a gente, não consegue figurar seja como for. Serão seres curtos de perna e muito morenos, ou antes altos e esbeltos? Musculados ou franzinos? Parecer-se-ão com os italianos, com os mouros, com os gregos? As mulheres usarão véus na cabeça ou a cabeleira ondulada ao vento? Pouco importa, trata-se de uma terra demasiado fabulosa para pertencer seja a quem for. E é porque não pertence a ninguém que todos, uns ou outros por seu turno, dela se apoderam. Os próprios deuses a disputam. Os seus senhores actuais são mamelucos, antigos mercenários e escravos vindos do Egipto, tal como os hebreus. Suplantaram os cruzados que suplantaram os bizantinos que suplantaram os romanos, os gregos, os persas, os babilónios, os assírios. E eis que já os otomanos batem às portas de Jerusalém para expulsar dela os mamelucos. Todos são apenas ocupantes. A sua presença está votada a ser ali precária, transitória, muito simplesmente porque todos cometem o mesmo erro, uns atrás dos outros, ao longo de séculos: confundem constantemente a questão. A quem pertence, então, a Terra Santa? Àqueles que a possui? Àqueles que a ocupa? Àquele que a ama? Se for deveras tão santa como se diz, uma terra assim não pode ser conquistada pelas armas. Não pode ser possessão, domínio ou sequer território. E, nesse caso, não deveria inverter-se a pergunta e questionar: qual é o povo, então, que lhe pertence? Deveras. Os mamelucos?
Acre nada tem de muito bíblico. É uma fortaleza como essas que se vêem um pouco por toda a parte nos campos de França. As suas ameias grosseiras, talhadas improvisadamente na massa, recortam-se sobre um céu límpido, que os pardais invadem precipitando-se em bandos sobre os resíduos que juncam os cais. O porto é pequeno. Dois navios oscilam molemente no calor, tangidos por uma leve brisa de oeste. Marinheiros e soldados deambulam, procurando o caminho que os levará às tabernas e às raparigas. Viam-se amontoados por toda a parte barris gordurosos, cheios de azeite, sacos de especiarias, caixotes vazios, abandonados aos ratos. Nem François nem Colin experimentam emoções de circunstância. Não se prosternam para beijar o solo sagrado, que jaz sob os detritos.
Villon contenta-se com dobrar um joelho, para observar as conveniências. E contudo sente uma presença, ou um sopro, que paira por cima dos telhados, alastra até às encostas do Carmelo, cobre as dunas que orlam o litoral. Uma presença invisível que não é necessariamente Deus. Antes, uma espécie de irradiação implacável que torna tudo mais claro, mais certo. Será da luz fulgurante que, aqui, não se sobrecarrega de cambiantes? François tem a impressão de que este país árido e duro lhe lança um desafio». In Raphael Jerusalmy, Os Caçadores de Livros, 2013, tradução de Miguel Serras Pereira, Clube do Autor, Lisboa, 2015, ISBN 978-989-724-237-3.

Cortesia de CAutor/JDACT