domingo, 27 de maio de 2018

Rosa Brava. José Manuel Saraiva. «… constituíam o resto da indumentária que lhe tapava as atraentes formas do corpo. Na cabeça enfiou uma touca em escarlata, da Flandres, a que sobrepôs um véu bordado a ouro, prata e aljôfar»

jdact

«(…) Igualmente aplaudido foi o conteúdo da carta régia em que Fernando I ordenava ao juiz de Coimbra que examinasse os privilégios da Universidade e os fizesse respeitar, atribuindo ao conservador da escola, noutro passo do diploma, a responsabilidade por toda a legislação cível e criminal. Mas se em relação a este assunto os lentes manifestaram total concordância já o mesmo não se poderá dizer quanto ao teor de uma outra carta, com data de Julho desse ano, por via da qual o rei proibia o alcaide de Coimbra de apreender aos estudantes e aos seus ovençais as bestas que transportavam os alimentos que lhes eram destinados. Para os lentes, talvez para a maioria, esta medida comportava sérios perigos, designadamente o da perda de influência e autoridade do alcaide de Coimbra.
De tudo ou de quase tudo se falou, portanto, ao longo dessa manhã outonal, soalheira e fria. E só mesmo um insólito acontecimento, inabitual em espaços onde por qualquer motivo se concentrasse a nobreza e o clero, alterou o quadro em que se celebrava o tempo de espera pelo início do casamento. Faltava pouco para o meio-dia quando, sem que nada o fizesse prever, irrompeu do grupo dos populares um homem aos vivas a el-rei de Portugal, certamente convencido de que estaria ali o monarca Fernando I. Quem é o desgraçado?, alguém perguntou, em alvoroço, no meio da selecta multidão. Afastem o desgraçado, pediu, assustada, a dama que fazia parelha com o tabelião, amigo do conde. O desgraçado era o maluco de Barcelos, um homem magro de rosto e de corpo, vesgo do olho direito, descalço, de barba crescida e cabelos desgrenhados, coberto apenas por um velho tabardo aguadeiro, oferecido com certeza, e há muito tempo, por alguma criatura piedosa da terra ou por alguém de posses que por lá tenha passado.
A princípio, a generalidade dos convidados não atribuiu demasiada importância ao pobre, muitos até desviaram os olhos, tal o aspecto sebento e miserável dele, e só mesmo quando dois criados de João Afonso Telo o foram levar para longe e à força bruta é que os convivas deram atenção, rindo uns e gritando outros palavras de incentivo aos agressores: dêem nele, dêem nele. E tanto lhe deram que o homem, cujo nome e descendência todos ignoravam em Barcelos, ficou estendido no lamaçal, gemendo de dores e de frio.
Dentro da casa, entretanto, nos confortáveis aposentos que lhe serviram de suave pouso na infância e na juventude, Leonor Teles continuava rodeada por cinco aias, incluindo Briolanja, a preparar-se e a deixar-se preparar para a festa do casamento. Para um dia tão especial vestiu uma fraldilha em tecido de lã muito fino e, por cima dessa intimíssima peça, umas calças de pano de Lille presas com ligas abaixo do joelho. Um vestido branco de cambraia bordada a ouro e um manto de veludo vermelho, vindo directamente da Irlanda, constituíam o resto da indumentária que lhe tapava as atraentes formas do corpo. Na cabeça enfiou uma touca em escarlata, da Flandres, a que sobrepôs um véu bordado a ouro, prata e aljôfar. Os sapatos, que lhe modelavam os pés, eram de salto alto e forma bicuda. A esta luxuosa vestimenta, Leonor Teles acrescentou, como elementos de adorno, distintos relicários em ouro e finas pedrarias. E perfumou-se com polvilhos de Chipre.
À medida que o tempo decorria e todos se impacientavam, ia chegando à câmara da nubente, num crescendo interminável, o tumulto das vozes dos convidados cada vez em maior número, o insuportável latido dos cães vadios, o grunhido dos porcos, a estrídula cantata das galinhas que se revolteavam em alvoroço e medo nas cercanias do terreiro, junto à lixeira. O barulho era tanto e tamanha a algazarra que a dado momento, quando a chinfrineira começou a atormentar o já fragilizado estado de espírito de Leonor, ela dirigiu-se a uma das aias e, com a voz firme e determinada, gritou: fecha-me a porcaria dessas portadas, que já não posso ouvir a turba. Logo de seguida, mais calma e quase num sussurro, acrescentou: e ainda não jantaram. Todas sorriram com a ironia.
Sem perda de tempo, uma das raparigas foi acender uma série de velas e tochas de sebo para que a câmara subitamente escurecida fosse iluminada e o trabalho de arranjo da nubente concluído. E quando o foi enfim, Briolanja Mendes virou-se para a sua admirável dama, recuou dois passos e, num tom de voz muito suave, disse: está linda, senhora, muito linda. Que Deus a proteja! Leonor Teles não respondeu imediatamente. Só depois de reparar a emoção, de se mirar ao espelho de prata pendurado na parede, de dispensar a presença das outras aias que a ajudaram a vestir-se e a compor-se, decidiu contestar. Não digas que estou linda, Briolanja. Tu melhor que ninguém sabes que não posso estar formosa, porque nenhuma mulher o é se não sentir amor pelo homem que lhe coube em sorte. Vou para o casamento com um punhal atravessado no peito, de coração coberto de dor e de sangue, pelo que só eu e Deus sabemos quanto martírio invade a minha pobre alma neste trágico momento...» In José Manuel Saraiva, Rosa Brava, Oficina do Livro, 2005, ISBN 978-989-555-113-2.

Cortesia de OdoLivro/JDACT