segunda-feira, 4 de julho de 2022

A Casa do Pó. Fernando Campos. «Homem que em toda a sua vida não tinha visto o mar, jazia como morto em cima do catre. Quando tomava seu ânimo algum alento, todo o seu negócio era a confissão como boamente podia»

 

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A Tempestade

«(…) Ficaram para trás a saudosa Ítaca e as sombras de Ulisses e da doce Penélope. A estátua de Zeus olímpico, marfim e ouro sobre madeira preciosa, uma das sete maravilhas do mundo, ardera algures num incêndio, junto de Constantinopla, e já não tutela as vitórias dos atletas de músculos torneados e duros, brilhantes de suor. Nada resta já da formosura de Helena e da juventude de Paris, que provocaram a ira de heróis e de deuses. Não cai em transe, ao fundo da caverna, a enigmática pitonisa, a esfinge não importuna o viandante às portas de Tebas, na Beócia, nem por caminhos estranhos vagueia oscilante e trôpego o fantasma cego do rei Édipo. Não vogam lentos e brancos à sombra dos ciparissos, nas águas mansas do Eurotas, os cisnes de Artemisa junto aos degraus de mármore do seu templo, em Éfeso... Um dia os deuses eternos morreram e com eles morreu o mundo antigo. Passou por aqui depois um sopro novo e escutaram-se palavras nunca até aí proferidas. Por todos estes lugares deixa vestígios a sombra de Paulo de Tarso, as pedras abrem brechas em que nascem ervas, ruem paredes e colunas, e este anfiteatro alarga-se, com centro em Roma, a todo o Mediterrâneo. De novo caem impérios e reinos, e mais uma vez, neste mundo actual e moderno, que está nascendo e em grande convulsão, o palco, o teatro está a alargar-se a toda a Terra.

O mar Jónio reduziu há muito as suas dimensões e torna-se agora apenas um pequeno anfiteatro onde, além das ambições humanas de poder e riqueza dos imperadores e tiranos, dos mercadores de Levante e de Ocidente, Cristo e Maomé medem metro a metro o terreno que pisam. Terras frias, cruéis, de uma realidade que faz estremecer a evocação da poesia e o véu de doçura de que os antigos as nimbaram fazem compreender a comoção inspirada com que os artistas de agora, escultores, pintores, poetas, estão fazendo renascer esse amável espírito. Tínhamos nós diante dos olhos a ilha de Cândia, um dia ao cair da tarde o céu toldou-se de nuvens negras e pesadas. Um vento frio começou a encrespar a superfície das águas e a nossa pele, que logo arrepiados puxávamos a roupa contra o peito. Estrondeou em cima a trovoada, com relâmpagos súbitos e medonhos, em fragoroso cascalhar. Desabou dos céus a chuva em grossas varas, as ondas cavavam esverdinhadas, espumejando uma babugem branca, lívida. Os da tripulação mais experimentados no mar começaram a temer a tormenta. De um lado a outro corriam marinheiros açodados às ordens do piloto, rapidamente arriando, amainando as velas, atando as vergas e calabrês, concertando todas as enxárcias para que se não desfibrassem com a força da borrasca e lançando cordas da popa à proa, uma de um bordo e outra doutro, a fim de que se segurassem nelas para acudirem aonde urgisse. De outra maneira era impossível terem-se de pé. Davam de si os madeiros em estertor. Os passageiros tínhamos de ficar nos camarotes ou na coberta, muito quietos cada um em seu lugar, uns gemendo, outros gritando, outros rezando e não poucos transformando o terror numa agonia tão grande que as tripas lhes davam volta e vomitavam o que não tinham comido, pois em todo o tempo que a tempestade durou ninguém se lembrou de levar qualquer alimento à boca. A coisa chegou a tanto que o patrão e os principais que iam na nau..., julgando a morte chegada, pediam com muitas lágrimas a confissão. Os padres que íamos na viagem não tínhamos mãos a medir. Até o pobre do frei Zedilho. Homem que em toda a sua vida não tinha visto o mar, jazia como morto em cima do catre. Quando tomava seu ânimo algum alento, todo o seu negócio era a confissão como boamente podia». In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, 1986, Editora Objectiva, Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.

Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT

JDACT, Fernando Campos, Literatura, A Arte da Escrita,