quarta-feira, 6 de julho de 2022

Inês de Castro. Isabel Stilwell. «Para orgulho da minha mãe que deixaria de olhar para mim com aflição, desejando-me outro. Como gostava do Pedro que via refletido nos olhos verdes da minha Inês»

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Até ao Fim do Mundo…

«(…) Volto ao papel. Tenho de ser rápido, não posso perder tempo, já perdi tempo demais. Conto a história do meu santo protector?, mas quando retrato cada momento da vida de São Bartolomeu é de mim que falo. Com dois traços desenho o berço junto da cama da minha mãe, a cama de madeira rendilhada onde sempre dormiu, e lá está o diabo à espreita, pronto a raptar o recém-nascido, um príncipe perfeito, deixando em seu lugar o filho do diabo, uma criança raquítica e maldosa, que atormentará a infeliz que não deu pela troca. A mãe que o amará apesar das suas imperfeições, sem desistir de procurar nele o verdadeiro filho, o filho que vislumbrou quando lho puseram ao colo ainda o cordão que os unia palpitava.

Levanto o bico da pena, e inspiro fundo, procurando sossegar a respiração, e lanço-me para o segundo momento desta história que a minha avó, a Rainha Santa, tantas vezes me contou, procurando acalmar o meu desespero com esta maldita gaguez que ainda hoje me tolhe. Prometia-me que, por divina intercessão do discípulo de Jesus, seria um dia salvo destas obras que satanás faz em mim e que me tornam motivo de gozo e escárnio. Fraquezas que não são de rei. Não se enganava. Com Inês, as palavras saíam-me da boca sem entraves e, quando estava ao seu lado, evaporava-se a agitação e a impaciência, diluía-se a raiva e o impulso de me vingar de tudo e de todos, por ser uma criatura indigna da mãe e da avó que Deus me dera, frágil demais para enfrentar o meu pai, um rei todo-poderoso, que não vergava a nada nem a ninguém. Até que... assassinou aquela que me fazia viver, matando-me com ela. Esfolando-me vivo, como a São Bartolomeu, de quem conto a história.

Nos braços de Inês, ao som da sua voz, sentia-me o menino deixado num ninho de uma águia, protegido pela mais real de todas as aves, que um dia voltara por fim a casa dos pais, reconhecido como o filho perdido, já homem inteiro e corajoso. Para orgulho da minha mãe que deixaria de olhar para mim com aflição, desejando-me outro. Como gostava do Pedro que via refletido nos olhos verdes da minha Inês» In Isabel Stilwell, Inês de Castro, Espia, Amante, Rainha de Portugal, 2021, Planeta de Livros Portugal, 2021, ISBN 978-989-777-509-3.

Cortesia de PlanetaLPortugal/JDACT

JDACT, Isabel Stilwell, Inês de Castro, Cultura e Conhecimento,