domingo, 10 de setembro de 2023

A Abadia dos Cem Pecados. Marcello Simoni. «Como única resposta, a freira convidou-a a observar o inchaço violáceo na cabeça. Receio que um fragmento ósseo se tenha desfeito e esteja a comprimir o cérebro»

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A Pedra do Exílio

Planalto de Crécy. 26 de Agosto de 1346

«Foi então que Maynard de Rocheblanche compreendeu. A intriga em que fora metido era bem mais ampla e complexa do que poderia ter imaginado. Karel do Luxemburgo não devia ser o único homem de poder envolvido na morte de Jang Blannen, e talvez nem sequer o mais perigoso. O cavaleiro intuiu que não se podia permitir agir com ingenuidade. Tinha a sensação de se encontrar sob o alcance de um grande olho que o observava de cima. O olho de um indivíduo desapiedado que o cercaria por todos os lados.

Observou pela última vez o bosque onde a mulher desaparecera. Depois, procurando vencer a ansiedade, esporeou o cavalo para este, ao longo do caminho que serpenteava à luz de um novo dia.

Reims, Convento de Sainte-Balsamie

8 de Setembro

Os dedos da freira passaram pela cabeça do homem inconsciente, exercendo uma leve pressão nas margens do hematoma, pouco acima da têmpora. A irmã Eudeline observava-o em silêncio, ansiando por uma resposta, e entretanto pensava no homem que ficara à espera, fora do valetudinarium.  Trata do meu companheiro de armas, dissera-lhe. Depois falamos. Eudeline assentira, apesar de agastada pela sua atitude. O irmão apresentara-se depois de quase dois anos de ausência e nem sequer se dera ao trabalho de lhe apertar as mãos, quanto mais de lhe dirigir uma palavra carinhosa. E sabia Deus como precisava disso. A clausura concedera paz e sabedoria, mas roubara-lhe os momentos de alegria decorridos em companhia de Maynard e da mãe de ambos. Essas memórias nunca a abandonavam, nem nas horas de oração, quando tudo o resto se eclipsava em torno das luzes esfumadas dos círios. Contudo, Eudeline não teria abandonado o claustro por motivo algum no mundo, visto que entre os seus muros encontrara a salvação. Não apenas da alma, mas também da razão. A monja infirmaria retirou os dedos do hematoma.

Reverenda madre, parece-me que o inchaço se deve a uma fratura. Uma ferida grave?, perguntou Eudeline, regressando à realidade. Aproximou-se de Robert de Vermandois, deitado numa comprida tábua de madeira, entregue a um atormentado delírio.

Como única resposta, a freira convidou-a a observar o inchaço violáceo na cabeça. Receio que um fragmento ósseo se tenha desfeito e esteja a comprimir o cérebro. Hesitou um instante e depois pousou a mão sobre dois livros colocados na mesa que se encontrava ao lado, como que para avalizar a sua tese.

Eudeline conhecia bem aqueles códices, os manuais de prática cirúrgica de Rogerio Frugardi e de Henri de Mondeville. Havia anos, ela própria os consultara, para aprender algumas noções da arte médica, mas sentira-se repugnada. Apercebendo-se de que estavam abertos nas ilustrações do crânio humano, foi tomada de um frémito. Pensais que será necessário...

Se estiver certa, terei de fazer uma incisão na pele e no osso, disse a freira, determinada. Precisarei de ajuda, talvez da irmã Marie... Eudeline abanou a cabeça. A irmã Marie é velha, não tem mão firme». Então quem...» In Marcello Simoni, A Abadia dos Cem Pecados, 2014, tradução de Inês Guerreiro, Clube do Autor, 2016, ISBN 978-989-724-278-6.

Cortesia de CdoAutor/JDACT

JDACT, Marcello Simoni, Literatura,  Conhecimento, Itália,