NOTA:: Mário Rainho faleceu no dia 2 de Janeiro de 2025, com 97 anos
«Engenheiro civil, caiu-lhe, no trabalho da vida, a tarefa de ir dirigir a construção do caminho-de-ferro do ramal de Cáceres. E, nessa qualidade, tinha que retalhar os tapadões, as tapadas, as hortas e os currais, que a estrada de ferro tinha naturalmente de dividir, cabendo-lhe o odioso de ferir, com golpes de espada, as heranças avoengas ou as deixas testamentárias de muitas gerações e os códigos de honra, que o estatuto de posse foi criando no deambular dos séculos. De fina sensibilidade, o engenheiro de tudo ia tomando conta e nota, inventariando emoções e retratos de personagens, com que criou a comédia de costumes imortalizadora.
O Mário Rainho alongava-se em biografias e hagiografias, em
dados contornos, enquanto eu, de espírito cada vez mais giratório, me
espairecia na lonjura dos acontecimentos, para trás e para a frente dos carris
do tempo, ora evocando´Camilo Castelo Branco, que dizia que até
os pardais se assustavam com aquele touro negro de ferro, a galgar as
travessas, ora colocando o engenheiro Horta, na dianteira, a corrigir erros e cálculos do fidalgo João
na estação de Caminho de Ferro da Beirã».
No dissêncio dos dias, consegui pô-los a conversar acerca de cálculos, topografias e texturas de construção, conseguindo, com inegável sucesso, que o tempo se encurtasse para ser mais legível a história e mais fácil a construção dos amanhãs. Bom conhecedor do cadastro de Marvão, o Horta agradeceu a João da Câmara os seus ensinamentos, este louvou-lhe as simpatias e as referências da memória.
E a mim, narrador do futuro, testemunha credenciada de consensos,
aprouve-me a função de assistir àquele acontecido encontro, forrado, para
aquém, da espessura dos dias. O meu ajudante, com a fraqueza das forças a
afadigarem as suas energias, foi-me levando para o jardim do Parque,
todo recheado de árvores frondosas, de cujos galhos os passarinhos faziam coreto,
para aí entoarem seus trinados de alegria. Era um jardim cuidado e frequentado
por gente, que dele fazia uso vivo. Pessoas sentadas nos bancos, com ar
despreocupado e livre, conversavam amenamente com figurantes que passavam, e a
quem davam dedos grandes de conversa, para terapia da monotonia ou da solidão
da mesma mesmice dos dias.
E, enquanto ele me continuava a falar das rivalidades com Marvão, eu, a
boiar em mim, ia estendendo o olhar gostoso para aquela natureza, ali
trabalhada e ordenada, quando, ao subir a ladeira, nas suas calmas, me apontou
para a estalagem, que se esquinava no encontro de duas ruas. Era a Casa Parque,
de construção de meados do século, denotando qualidade bastante para compensar
os meus depauperados aposentos, já com descrição acima». In Aníbal Belo,
Carta de Marvão, Edições Universidade Fernando Pessoa, 2001,
ISBN-972-8184-66-2.
Cortesia da U.F. Pessoa/JDACT