quarta-feira, 26 de abril de 2017

Abadia dos Cem Pecados. Marcello Simoni. «O que vos traz à minha presença, com essa perna tão magoada? Uma notícia funesta. Vejo, porém, que estais ocupado, e não desejo ser inoportuno»

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A pedra do exílio
Planalto de Crécy. 26 de Agosto de 1346
«(…) Dois homens conversavam na sacristia da igreja abandonada, sob a luz filtrada por uma janela geminada. O rei Filipe VI de Valois era o mais alto. Ainda trazia a armadura vestida e a sobreveste azul com as flores-de-lis douradas de França e gesticulava como que à beira de um acesso de raiva. O aristocrata que se encontrava consigo, de modos mais pacatos, estava por sua vez envolvido num elegante capote escuro que destacava a carnação clara e os cabelos ruivos. Maynard tentou lembrar-se de onde já o havia visto, embora a sua principal preocupação, naquele momento, consistisse em manter um porte digno na presença, do soberano. Para isso recusara apoiar-se no rapaz e procurara um cajado, de modo a caminhar erecto, sem forçar a perna esquerda. Empresa nada simples, sobretudo tendo de enfrentar as escadas no interior da igreja.
Ao ver o monarca envolvido numa conversa, pensou recuar e procurá-lo mais tarde. Depois lembrou-se de que a sua presença poderia ter sido notada. Vossa majestade, disse, com uma vénia embaraçada, peço audiência. Rocheblanche, o rei fez-lhe sinal para que avançasse, pensávamos que tivésseis caído em batalha. Estou vivo por milagre, majestade. O monarca examinou-o dos pés à cabeça. O que vos traz à minha presença, com essa perna tão magoada? Uma notícia funesta. Vejo, porém, que estais ocupado, e não desejo ser inoportuno.
Não façais cerimónia. Filipe VI apontou para o homem a seu lado. Este é o nobre Karel, conde do Luxemburgo. O filho do rei da Boémia. Podeis falar livremente na sua presença. Maynard observou com atenção o rosto do homem de cabelos ruivos e recuou um passo. Nem ao meu filho, intimara Jang de Blannen. Karel do Luxemburgo conservava os mesmos traços do pai, embora menos altivos e decerto não tão harmoniosos. Tinha um nariz demasiado grande, a testa descoberta pela calvície e as maçãs do rosto excessivamente pronunciadas. Contudo, foram os olhos azuis, arregalados e salientes, a deixá-lo de pré-aviso.
Então, Rocheblanche?, incitou-o o rei, contrariado pela sua hesitação. Que notícia nos trazeis? O cavaleiro manteve o olhar fixo no príncipe Karel, envolvido numa inesperada sensação de desconforto. João I da Boémia está morto, e baixou a cabeça em sinal de luto. Filipe VI cruzou os braços sobre o peito. Tendes a certeza, senhor? Nós pensamos que terá caído nas mãos dos ingleses. Infelizmente, mais do que a certeza, confirmou Maynard. Dei com o seu corpo martirizado enquanto tentava abandonar o campo de batalha. Karel interveio sem denunciar qualquer emoção. Era já cadáver? Antes de responder, o cavaleiro teve a impressão de que o príncipe se afastava lentamente do feixe de luz, como que para se esconder.
Ainda não, alteza. Falou-vos? Poucas palavras, mentiu Maynard, apenas para encomendar a alma a Deus. Algo na inflexão daquela pergunta deixara-o de sobreaviso. Sim? O rosto de Karel eclipsava-se na sombra. O meu nobre pai era um homem de muitos segredos. É estranho que não vos tenha confiado nenhum quando estava prestes a morrer. Rocheblanche encolheu os ombros. Embora ardesse de vontade de referir as palavras de Jang de Blannen, um pressentimento incitou-o a calar-se. E se se encontrasse precisamente diante do artífice da conspiração? O príncipe encostou um punho ao queixo, enrugando a testa.
Então dizeis que expirou rezando, continuou, pensativo. Como um homem comum. Como um valoroso guerreiro, precisou Maynard, dirigindo-se ao rei de França para interromper um discurso potencialmente insidioso. Um homem corajoso de quem devemos tirar o exemplo. É uma referência à nossa retirada?, replicou o rei, irritado. Salientava apenas a lição de coragem, majestade. A coragem não é sinónimo de inteligência estratégica, comentou o monarca. E creio que Karel do Luxemburgo está pronto a admitir que o seu nobre progenitor se sacrificou para concretizar uma proeza estúpida.
Não por uma proeza, inflamou-se Maynard, sentindo desprezar os valores com que crescera. Mas para incitar os homens ao ataque. Filipe VI abanou a cabeça. Conduziu-os ao massacre quando os dados já estavam lançados. Expôs a cavalaria aos arqueiros de Eduardo III. Sei-o perfeitamente, mas... E sabeis também quantos caíram, Rocheblanche?, gritou o rei, desdenhoso. Mais de quatro mil! Quatro mil cavaleiros vossos irmãos! Os ingleses dizimaram a nossa nobreza». In Marcello Simoni, A Abadia dos Cem Pecados, 2014, tradução de Inês Guerreiro, Clube do Autor, 2016, ISBN 978-989-724-278-6.

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