terça-feira, 11 de abril de 2017

Infiel. Ayaan Hirsi Ali. «Bebíamos água da torneira. Jamais conseguiríamos achar o caminho de volta se fôssemos pastorear rebanhos no deserto; não sabíamos nem mesmo ordenhar uma cabra sem levar um coice»

Cortesia de wikipedia e jdact
«(…) Durante o resto da vida, minha avó foi impecável em tudo. Criou oito meninas e um menino, e nunca houve quem dissesse uma palavra capaz de lhe de trair a virtude ou o trabalho. Ela inculcou nos filhos força de vontade, obediência e senso de honra. Pastoreava os animais, ia buscar lenha, construía cercados de varas rendadas com galhos arrancados. Tinha mãos e cabeça duras, e, quando o marido presidia às reuniões de clã na qualidade de árbitro, a avó procurava manter as filhas bem longe e a salvo dos homens, das cantorias e dos tambores. Só à distância é que elas podiam ouvir os desafios poéticos e observar os homens trocarem bens e histórias. Minha avó não tinha ciúme da co-esposa mais velha, embora a mantivesse à distância; quando esta morreu, tolerou a presença da arrogante enteada Khadija, a garota quase da sua idade. Artan tinha nove filhas e uma esposa jovem. Era sumamente importante preservar a honra de todas essas mulheres. Ele as conservava bem longe dos outros nómades, passando semanas a errar em busca de um lugar com pasto e sem homens. Viajava incessantemente pelos mais remotos desertos. Debaixo da árvore da nossa casa de Mogadíscio, a avó sempre falava na bela vaziez (qualidade do que é ou está vazio) de se sentar diante da cabana que ela construíra com as próprias mãos e ficar contemplando a vastidão do espaço sem fim.
De certo modo, ela vivia na Idade do Ferro. Não havia sistema de escrita entre os nómadas. Os artefactos de metal eram raros e valiosos. Os ingleses e os italianos proclamavam-se senhores da Somália, mas isso não significava nada para ela. Para a avó, não havia senão os clãs: os grandes clãs nómadas dos isaq e dos darod, os inferiores agricultores hawiye e os sab, mais reles ainda. Aos trinta e poucos anos, quando viu um branco pela primeira vez, ela pensou que o sol tivesse queimado superficialmente, levemente, a pele do pobre homem. A minha mãe, Asha, nasceu no início da década de 1940, com a sua gémea idêntica, Halimo. A avó as pariu sozinha, debaixo de uma árvore. Eram a sua terceira e quarta filhas; ela tinha uns dezoito anos e estava pastoreando cabras e ovelhas quando sentiu as dores. Deitou-se e deu à luz; então cortou os cordões umbilicais com a sua faca. Algumas horas depois, arrebanhou as cabras e ovelhas e conseguiu levá-las para casa em segurança, antes do anoitecer, carregando as gémeas recém-nascidas. Ninguém deu importância à façanha: ela apenas tinha levado mais duas meninas para casa. Para a minha avó, os sentimentos não passavam de uma perversão imbecil. Mas o orgulho, sim, era importante, orgulho pelo trabalho, orgulho pela própria força, e a autoconfiança. Se fosse fraca, as pessoas falariam mal. Se as suas cercas de espinhos não fossem fortes o bastante, os seus animais seriam atacados por leões, hienas e raposas, o seu marido casaria com outra, as suas filhas perderiam a virgindade e seus filhos seriam objecto de desprezo. Aos olhos dela, éramos crianças inúteis. Criadas em uma casa de blocos de cimento, com telhado sólido, não sabíamos fazer nada que prestasse. Andávamos pelo leito da rua; a rua da nossa casa não tinha calçada, porém, mesmo assim, era uma via aberta na terra.Bebíamos água da torneira. Jamais conseguiríamos achar o caminho de volta se fôssemos pastorear rebanhos no deserto; não sabíamos nem mesmo ordenhar uma cabra sem levar um coice. A avó dedicava a mim um desprezo todo especial. Eu tinha pavor de insectos, por isso, na sua opinião, eu era uma criança verdadeiramente burra. Quando as suas filhas completavam cinco ou seis anos, ela já lhes havia ensinado as coisas mais importantes que precisavam saber para sobreviver. Eu não sabia nada. Minha mãe também nos contava histórias. Tinha aprendido a cuidar dos animais da família e a conduzi-los pelos desertos aos lugares mais seguros. As cabras eram presa fácil para o predador; as meninas também». In Ayaan Hirsi Ali, Infiel, 2006, tradução de Luís Araújo, Editora Schwarcz, Companhia das Letras, 2007, ISBN 978-853-591-109-1.
Cortesia de CdasLetras/JDACT