domingo, 16 de abril de 2017

Vera Cruz. João Morgado. «Corriam pela vida, sentindo-se esquecidos pelos deuses e pelo seu senhor, que era deus em terra de homens, e que sempre os tinha protegido dos invasores»

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Vasco da Gama e o samorim de Calecute
«(…) Quando a armada acalmou as suas bocas-de-fogo, as paredes do palácio pararam de tremer. O samorim ainda aguardou uns minutos a certificar-se de que a ira dos portugueses tinha acalmado. Depois, bem depois, ainda trémulo, a vacilar, abeirou-se da janela estreita e olhou o mar. Ficou boquiaberto. Ao largo, viu os barcos alquebrados sobre as águas, envoltos em chamas e fumo negro. Só as embarcações portuguesas estavam intactas, imponentes. Três naus e uma caravela perto da costa, e uma outra mais longínqua que, de vez em quando, ainda disparava sobre pequenas barcas fugidias. O porto estava arrasado, sobravam apenas destroços, como se a terra tivesse tremido. A cidade estava esfacelada de um lado, com uma grande área semidestruída e em chamas, de onde se ouviam clamores de angústia. As suas gentes começavam a sair dos refúgios, a ver o volume dos destroços, a contar os mortos entre os seus, a 1ançar gritos de desespero aos céus. O pânico tinha-se instalado e todos começavam a correr em debandada para o outro lado da cidade, deixando os seus pertences, esquecendo os cadáveres e os feridos, largando as crianças assustadas e sujas pelas ruas, sufocadas em choro. Corriam pela vida, sentindo-se esquecidos pelos deuses e pelo seu senhor, que era deus em terra de homens, e que sempre os tinha protegido dos invasores. Mas o samorim teve a mesma sensação de abandono e impotência. Um calafrio lambeu-lhe a espinha e suores frios caíram-lhe pelo rosto. Estava em pânico. Ao longe, só os amontoados de cabanas de colmo dos sem casta pareciam ter sido poupados. Toda a parte nobre da cidade estava ferida de morte e até uma parte do sumptuoso palácio tinha sido atingida. Algumas torres ornamentadas estavam derribadas sobre os jardins.
Apenas alguns pórticos resistiam. Havia já colunas de pórfiro tombadas pelo chão, deixando os zimbórios semi-arruinados, tombados de esguelha sobre os fendidos terraços de mármore branco, por onde se viam os nobres brâmanes e serviçais sudras a fugir lado a lado sobre os escombros, esquecendo a hierarquia das castas. As flores tinham perdido o viço e os lagos artificiais vazavam águas prenhes de peixes mortos. As flores não tinham cor, como não tinham cor os peixes nem as faces atemorizadas do samorim. Foi então que vários guerreiros entraram nos seus aposentos. Dois barcos militares com portugueses dirigem-se à terra, informaram os homens, sem as usuais mesuras perante a presença do Príncipe dos Mares. Glafer compreendeu que podia estar eminente um ataque por terra à sua residência e que a sua própria vida corria perigo. Entendeu por isso que melhor seria fugir, ou antes, retirar-se estrategicamente para um lugar mais seguro, o seu palácio oficial, no interior do principado, junto às montanhas. Partiu resguardado na força dos homens mas rezando pela protecção divina. Na sua boca cabiam em simultâneo as palavras sagradas com que exultava os deuses e as palavras rudes com que amaldiçoava os portugueses e a hora em que os ventos os tinham levado a aportar nas suas terras, dois anos antes, ainda no governo de seu tio...
… Corria o dia 17 de Maio do ano do Senhor de 1498, quando três velas de grande porte chegaram com o vento sul e riscaram o horizonte límpido do mar de Calecute. Estavam capitaneadas por um barbudo infernal, Vasco da Gama, ele a bordo da nau São Gabriel, seu irmão Paulo da Gama, ao leme da nau São Rafael, e o conhecido capitão dos mares, Nicolau Coelho, à frente da caravela Bérrio. Há dias que marcam a história dos povos e este era um desses. O sol fingia ser igual ao de tantos outros dias, porque as sortes das gentes mudam de repente sem que os céus enviem um sinal. Dezassete de Maio, as costas malabares nunca mais seriam as mesmas; nem mesmo o reino de Portugal». In João Morgado, Vera Cruz, Clube do Autor, Lisboa, 2015, ISBN 978-989-724-207-6.

Cortesia de CAutor/JDACT