sexta-feira, 29 de setembro de 2017

A Música dos Números Primos. Marcus Sautoy. «Estarão cientes de que os matemáticos se têm esforçado durante séculos para conceber um modo de fazer o que John e Michael faziam espontaneamente: gerar e reconhecer números primos?»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Alguns filósofos podem discordar de uma visão de mundo tão platónica, essa crença numa realidade absoluta e eterna além da existência humana, mas acredito que é isso o que os torna filósofos, e não matemáticos. No livro Conversations on Mind, Matter and Mathematics, há um diálogo fascinante entre Alain Connes, o matemático citado no e-mail de Bombieri, e o neurobiólogo Jean-Pierre Changeux. Durante a conversa, nota-se um momento muito tenso quando o matemático defende a existência da matemática como algo externo à mente, enquanto o neurologista está determinado a refutar essa ideia: por que não veríamos π = 3,1416 escrito em letras douradas no céu, ou 6,02 × 1023 surgindo nas reflexões de uma bola de cristal? Changeux manifesta a sua frustração com a insistência de Connes de que, independentemente da mente humana, existe uma realidade matemática crua e imutável, e no centro desse mundo encontramos a lista imutável de primos. A matemática, declara Connes, é inquestionavelmente a única linguagem universal. Podemos imaginar a existência de diferentes químicas ou biologias do outro lado do Universo, mas os números primos continuarão sendo primos em qualquer galáxia em que os contemos.
No romance clássico de Carl Sagan, Contacto, os alienígenas usam números primos para fazer contacto com a vida na terra. Ellie Arroway, a heroína do livro, trabalha no programa Seti, sigla em inglês para Busca por inteligência extraterrestre, escutando as crepitações do cosmo. Certa noite, quando são apontados em direcção a Vega, os radiotelescópios subitamente captam pulsos estranhos sobrepostos ao ruído de fundo. Ellie reconhece imediatamente o ritmo desse sinal de rádio. Dois pulsos seguidos por uma pausa, então três pulsos, cinco, sete, onze e assim por diante, seguindo por todos os números primos até 907. Então a sequência recomeça. Esse tambor cósmico tocava uma música que os terráqueos não deixariam de reconhecer. Ellie tinha a certeza de que somente uma forma de vida inteligente poderia gerar esse ritmo: é difícil imaginar algum plasma radioactivo emitindo uma série regular de sinais matemáticos como esses. Os números primos foram escolhidos para chamar a nossa atenção. Se a cultura extraterrestre houvesse transmitido os números vencedores da lotaria alienígena dos últimos dez anos, Ellie não teria sido capaz de distingui-los do ruído de fundo. Embora a série de primos pareça ser tão aleatória quanto uma lista de bilhetes vencedores, a sua constância universal determinou a escolha de cada número nessa transmissão alienígena. Essa é a estrutura que Ellie reconhece como o sinal de vida inteligente.
A comunicação através de números primos não se restringe à ficção científica. No livro O homem que confundiu a sua mulher com um chapéu, Oliver Sacks relata o caso de dois irmãos gêmeos de 26 anos de idade, John e Michael, cuja forma mais profunda de comunicação consistia num intercâmbio de números primos de seis algarismos. Sacks descreve a primeira vez em que os encontrou trocando números secretamente no canto de uma sala: a princípio, pareciam dois sommeliers experientes, compartilhando sabores exóticos, apreciações subtis. Inicialmente, Sacks não consegue entender o que os gémeos estão fazendo. Porém, assim que decifra o código, memoriza alguns primos com oito algarismos e revela-os furtivamente durante a conversa da manhã seguinte. A surpresa dos gémeos é seguida por um momento de concentração profunda, que se transforma em júbilo quando reconhecem outro número primo.
Embora Sacks houvesse recorrido a tabelas de primos para descobrir os seus números, o modo como os gémeos geravam os seus primos é um enigma impenetrável. Será possível que esses autistas-génios conhecessem alguma fórmula secreta que passou despercebida por gerações de matemáticos? A história dos gémeos é uma das favoritas de Bombieri. Para mim, é difícil ouvi-la e não ficar pasmo e deslumbrado com o funcionamento do cérebro, mas não sei se os meus amigos não-matemáticos reagem da mesma maneira. Terão eles alguma ideia da natureza bizarra e fantástica, quase sobrenatural, desse talento singular que os gémeos manifestavam tão naturalmente? Estarão cientes de que os matemáticos se têm esforçado durante séculos para conceber um modo de fazer o que John e Michael faziam espontaneamente: gerar e reconhecer números primos?
Antes que alguém conseguisse descobrir o segredo dos gémeos, os médicos separam-os, aos 37 anos de idade, por acreditarem que essa linguagem numerológica privada estaria prejudicando o seu desenvolvimento. Se houvessem escutado as conversas abstrusas que circulam pelos departamentos universitários de matemática, esses médicos possivelmente também recomendariam interditá-los. É provável que os gémeos estivessem utilizando um truque baseado no que é chamado de pequeno teorema de Fermat para testar se um número é primo. O teste é semelhante ao método que os autistas-génios utilizam para determinar rapidamente que o dia 13 de Abril de 1922, por exemplo, foi uma quinta-feira, façanha que esses gémeos demonstravam regularmente em programas de TV. Ambos os truques dependem de algo conhecido como aritmética do relógio ou modular. Mesmo que não tivessem uma fórmula mágica para encontrar os primos, a sua habilidade era extraordinária. Antes de serem separados, já haviam chegado ao números de 20 algarismos, muito além dos valores atingidos pelas tabelas de primos de Sacks». In Marcus Sautoy, A Música dos Números Primos, 2003, 2004 (Harper Perennial), Edições Zahar, 2007, ISBN 978-853-780-037-9.

Cortesia de EZahar/JDACT